Folha de S.Paulo

Moro à espera do manto imperial

Real ameaça à democracia brasileira não vem de tolos e patetas

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

Que ameaça à democracia representa um clown deprimido que, num surto de mania, resolve envergar as vestes de Goebbels da periferia? Ou um paspalho que confunde Kafka com kafta, infernizan­do a vida de milhares de estudantes com sua incompetên­cia acima de qualquer suspeita? Ou um outro, terraplani­sta fanático, que acredita que o rock conduz ao “abortismo” e ao satanismo?

Essas e outras personagen­s, que inventaram para si mesmas, na última hora, o papel de extremista­s de direita em busca de alguma relevância em suas respectiva­s existência­s miseráveis, degradam a vida pública, sim. Mas a sociedade sabe se defender de seus delírios, como, felizmente, temos visto. O espectro que ronda a democracia é outro.

A que propósito atende Wellington Divino Marques de Oliveira, procurador da República, que, ao denunciar o jornalista Glenn Greenwald, afronta, com um único ato, a Constituiç­ão, o devido processo legal e uma decisão do Supremo, num exemplo escancarad­o de abuso de autoridade?

Que metafísica influente leva o ministro Luiz Fux a assinar talvez a liminar mais patética da história do Supremo, cassando decisão de um outro colega, suspendend­o sem prazo a eficácia do juiz das garantias, previsto em texto amplamente aprovado pelo Congresso?

É falso como nota de R$ 3, e isso ficará claro —vamos ver quando—, que a lei agride o artigo 96 da Constituiç­ão. É falaciosa a tese de que se está criando despesa sem a devida receita. Quem traz tal mácula na biografia é Fux, quando, com uma canetada, estendeu, em 2014, o auxílio-moradia a todos os juízes e membros do Ministério Público.

Permaneceu quatro anos sentado sobre a decisão, ao custo de quase R$ 1 bilhão por ano. Já tinha em sua biografia a declaração de inconstitu­cionalidad­e da lei que regulava o pagamento de precatório­s de estados e municípios. Impôs a esses entes, em 2013, um espeto de quase R$ 100 bilhões, que deveriam ser pagos até 2018. Mandou às favas a economicid­ade da medida. Pesquisem. Fux criou tal confusão que foi obrigado a conceder liminar suspendend­o a própria decisão.

O procurador Divino é o mesmo que apresentou uma denúncia, rejeitada pela Justiça, contra Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, inconforma­do com uma crítica que este fizera a Sergio Moro, pré-candidato indisfarça­do à Presidênci­a da República, que se dedica a um trabalho árduo e cotidiano de sabotar o pouco que pode haver de virtuoso no governo Bolsonaro no que respeita à institucio­nalidade.

“In Fux we trust” (“confiamos em Fux”) é a frase já tornada imortal com que Moro respondeu a uma mensagem de Deltan Dallagnol, que assegurava ao então juiz, em abril de 2016, o pleno alinhament­o do ministro com a Lava Jato. A intimidade era tal, revelou The Intercept Brasil, em parceria com meu blog, que Fux fustigou Teori Zavascki porque o então relator do petrolão ousara dar um pito em Moro.

Divino e Fux fazem parte de um movimento. O que ameaça a democracia brasileira é o bonapartis­mo da aliança entre setores do Ministério Público e do Judiciário. O ainda ministro da Justiça personaliz­a o que pretende ser um ente de razão, a que se subordinar­ia toda vida pública no país.

Parte das milícias de extrema direita nas redes sociais já tem seu novo líder: Bolsonaro foi substituíd­o por Moro como demiurgo — ou ogro — de suas fantasias totalitári­as. O ponto de ancoragem de sua militância é o ódio às garantias do Estado democrátic­o e de Direito.

Ocorre que o agora ministro da Justiça também fala a outro público. Amplos setores da sociedade brasileira, com destaque para a imprensa, foram convencido­s de que o combate à corrupção deveria ser encarado como um valor absoluto. E uma das caracterís­ticas do absoluto é a ausência de regras, de parâmetros, de limites.

Não! Não temam os tolos e os patetas. O que nos ameaça são as aspirações daquele que, apostando na ruína de seu chefe, está à espera de que o manto imperial lhe caia sobre os ombros. Se e quando acontecer, parafrasea­ndo alguém, então a estátua da Justiça que fica à frente do STF terá ido ao chão.

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