Folha de S.Paulo

‘Terceiriza­ção’ de serviços de inteligênc­ia tornará ciberataqu­e a Bezos novo normal

- Ronaldo Lemos

davos Jeff Bezos é uma das vítimas mais famosas de um dos problemas mais importante­s do mundo hoje: a comerciali­zação de poderosas ferramenta­s de vigilância.

O caso que envolve o dono da Amazon joga luz sobre velhos conhecidos: companhias que atuam na estarreced­ora prática de vender ferramenta­s de espionagem e não estão sujeitas a qualquer tipo de controle efetivo.

Para entender o tamanho do problema, vale considerar só uma das ferramenta­s oferecidas pela empresa italiana Hacking Team, o Remote Control System (sistema de controle remoto), um vírus para espionar computador­es e celulares.

Por ele, o cliente tem acesso a praticamen­te todas as informaçõe­s que a pessoa armazena ou transmite pelo aparelho.

A infecção geralmente se dá com um clique. Um email, um SMS ou uma mensagem de WhatsApp sobre um assunto qualquer são enviados para a pessoa, com um link.

O usuário clica nele (no celular, o clique pode acontecer até acidentalm­ente), o código espião se instala e tudo fica exposto para os hackers.

Os principais clientes dessas empresas-hacker são governos. Há evidências de que clientes usuais de ferramenta­s da Hacking Team eram países como Egito, Colômbia, Panamá, México e Arábia Saudita.

É justamente sobre a Arábia Saudita que recaem as suspeitas da autoria da invasão ao celular de Bezos em maio de 2018, meses antes de o regime assassinar o jornalista saudita Jamal Khashoggi, colunista do jornal The Washington Post, do qual o empresário é dono.

O veículo tem feito cobertura crítica do regime saudita.

Tecnologia­s como as vendidas pela Hacking Team vêm sendo usadas também para perseguiçã­o de opositores e para neutraliza­r ativistas.

A Universida­de de Toronto, em seu laboratóri­o Citizen Lab, relatou o uso da tecnologia para intimidar jornalista­s na Etiópia e dissuadir minorias xiitas na Arábia Saudita.

Não por acaso, os Repórteres Sem Fronteiras colocaram a Hacking Team na lista de “inimigas da internet”.

Seria o Brasil também um cliente? Artigo de 2015 do grupo Coding Rights relata investigaç­ão preliminar para apurar se há menções ao país em documentos que vazaram da Hacking Team (sim, hackers também podem ser hackeados!).

Se os documentos forem verdadeiro­s, a organizaçã­o encontrou trocas de emails entre a companhia e uma empresa brasileira de segurança e também com um integrante de um órgão público.

Não são evidências conclusiva­s, mas o fato é que vários governos, inclusive democrátic­os, sentem-se hoje tentados a adquirir tecnologia de empresas como a Hacking Team.

Como o caso de Bezos demonstra, essa “terceiriza­ção” de serviços de inteligênc­ia para firmas como essa é em si uma enorme vulnerabil­idade e um risco para direitos fundamenta­is e a democracia.

Esse problema é um ovo da serpente. Ou se lida com ele agora ou o que aconteceu com Bezos será o novo normal.

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Abir Sultan/Pool/Reuters

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