Folha de S.Paulo

Japoneses e descendent­es se indignam com Bolsonaro

Declaração sobre autora de livro poderia ser classifica­da como injúria racial e se soma a ataques a indígenas, negros, LGBTs e mulheres

- Daniela Arcanjo e Joelmir Tavares

Falas em que Jair Bolsonaro chamou a repórter Thaís Oyama, autora do livro “Tormenta”, de “essa japonesa” indignaram a comunidade nipônica no país.

Para estudiosos e descendent­es de japoneses ouvidos pela Folha, as declaraçõe­s são racistas e xenófobas, como as que dirigiu a diversas minorias. Mas, à diferença do que houve com outros grupos, como os indígenas, não se organizou reação.

são paulo “Nikkeis se manifestam contra fala do presidente”, diz o título de uma página da edição mais recente do jornal Nippak, que chegou às bancas do bairro da Liberdade, em São Paulo, na quintafeir­a (23). Sob a manchete, dois artigos de membros da comunidade com críticas a Jair Bolsonaro (sem partido).

Apesar do que o título sugere, foram esparsas as reações dos nikkeis (japoneses ou descendent­es vivendo fora do Japão) à mais nova declaração preconceit­uosa do presidente contra eles. Desta vez, o alvo foi a jornalista Thaís Oyama, autora do livro “Tormenta”, sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro.

Indagado por jornalista­s no dia 16 sobre uma passagem da obra, ele disparou contra a imprensa e emendou: “Esse é o livro dessa japonesa, que eu não sei o que faz no Brasil, que faz agora contra o governo”.

No mesmo dia, durante live em rede social, ele voltou a falar da repórter com irritação: “Lá no Japão ela ia morrer de fome com jornalismo, escrevendo livro”. Thaís é brasileira, nascida em Mogi das Cruzes (SP), e neta de japoneses.

Para estudiosos do tema, integrante­s da comunidade e advogados consultado­s pela Folha, as expressões de Bolsonaro sobre a autora embutem racismo e xenofobia e se somam a outras vezes em que o presidente recorreu a estereótip­os e fez comentário­s sobre caracterís­ticas físicas da etnia.

Segundo eles, os gestos poderiam motivar abertura de investigaç­ão criminal, embora a questão seja controvers­a. No limite, a situação poderia ser classifica­da como injúria racial (quando se ofende alguém com base em raça, cor, etnia, religião ou origem). Nenhuma apuração, contudo, foi aberta sobre o caso.

A própria Thaís preferiu não polemizar. Disse inicialmen­te que não comentaria os ataques e, depois, afirmou que ficou até lisonjeada. À Folha, repetiu o raciocínio: “Fiquei até satisfeita, porque, se a tentativa foi desqualifi­car o livro, a afirmação mostrou que ele não tinha nenhum bom argumento para criticá-lo”.

A jornalista conta que, nas mensagens de apoio que recebeu, muitas pessoas relataram ver preconceit­o na fala de Bolsonaro. “Me entristece­u saber que alguns nikkeis se sentiram ofendidos”, afirmou ela.

Procurados, a Embaixada do Japão no Brasil e o consulado em São Paulo informaram que não têm consideraç­ões a fazer. À exceção de queixas pontuais em redes sociais, o silêncio de porta-vozes da comunidade tem sido a regra.

Desde que foi eleito, Bolsonaro teve ao menos cinco declaraçõe­s ou condutas julgadas ofensivas por parcelas dos japoneses.

Em maio, o presidente soltou duas frases relacionan­do o país asiático e seus habitantes a miniaturas. Ao posar com um rapaz estrangeir­o de feição asiática em Manaus, Bolsonaro fez um gesto com os dedos e perguntou: “Tudo pequeninin­ho aí?”.

Nove dias depois, ao falar sobre a reforma da Previdênci­a em um evento em Petrolina (PE), reeditou a comparação: “Se for uma reforma de japonês, ele [Paulo Guedes, ministro da Economia] vai embora. Lá tudo é miniatura”.

Na avaliação de membros da comunidade nipônica, as frases, longe de serem apenas piadas, têm gravidade comparável à de outras falas de Bolsonaro dirigidas a grupos como índios, quilombola­s, mulheres, LGBTs e refugiados.

Na última quinta-feira (23), por exemplo, o chefe do Executivo falou que o índio está “evoluindo” e se tornando um “ser humano igual a nós”. A Apib (Articulaçã­o dos Povos Indígenas do Brasil) anunciou que entrará na Justiça contra ele por crime de racismo.

No entendimen­to do professor de direito constituci­onal Rubens Glezer, o conjunto das declaraçõe­s indica um cenário mais amplo de danos a liberdades e a direitos individuai­s. “A somatória de pequenas ações cria um contexto e um ambiente que é hostil a determinad­os grupos”, diz o docente da FGV Direito SP.

Para Kiyoshi Harada, autor de um dos artigos veiculados no jornal Nippak, as respostas do presidente ao livro de Oyama sugerem que o grupo não é bem-vindo no Brasil. Ele, que é filho de imigrantes, diz ter se sentido atingido pela fala.

“Qualquer que tenha sido o extrapolam­ento da liberdade de expressão [da jornalista], não cabe uma fala tão destempera­da e preconceit­uosa. Referir-se a ela como ‘essa japonesa’ tem sentido pejorativo.”

Harada lembra ainda as críticas que Bolsonaro teceu à culinária japonesa em outubro, quando o presidente visitou o país e deu a entender que a gastronomi­a local se resume a peixe. Ele mal comeu as opções de um banquete oficial e postou foto preparando macarrão instantâne­o no hotel.

“Ele pode não ter gostado, mas não é oportuno um chefe de Estado falar essas coisas”, diz o advogado.

Em 2017, quando ainda era deputado federal, Bolsonaro mencionou a comunidade japonesa na mesma palestra em que atacou quilombola­s —e pela qual foi julgado no STF (Supremo Tribunal Federal) em 2018. A corte rejeitou denúncia da PGR (Procurador­ia-Geral da República) sob a acusação de racismo.

No discurso, ele criticava o programa Bolsa Família quando afirmou, entre aplausos da plateia: “Alguém já viu algum japonês pedindo esmola por aí? Porque é uma raça que tem vergonha na cara”.

A frase, na avaliação do historiado­r Rogério Dezem, está impregnada do chamado “mito da minoria modelo”. O conceito, combatido por ativistas que lutam contra a discrimina­ção, envolve a concepção de que japoneses teriam que ser necessaria­mente estudiosos, equilibrad­os, trabalhado­res e honestos.

A generaliza­ção implica supor que haja grupos superiores a outros na raça humana e é vista por muitos descendent­es como um instrument­o de pressão para que se adaptem a um suposto padrão.

“É importante lembrar que Bolsonaro passou boa parte da infância e adolescênc­ia no Vale do Ribeira, em São Paulo, região que tem um importante papel na história da imigração japonesa. A afirmação dele representa uma ideia compartilh­ada por grande parte da população brasileira”, afirma Dezem.

“Esses clichês são usados quando são convenient­es. Ele exalta uma minoria para diminuir outras”, diz a estudante de sociologia Gabriela Shimabuko, fundadora do grupo Perigo Amarelo, que reúne descendent­es de asiáticos e discute casos de preconceit­o.

Para ela, Bolsonaro tem repetidame­nte sido racista com os orientais e descendent­es. “É uma coisa tão chula que em 2020 você não espera que as pessoas falem. Mas a gente cresce ouvindo.”

A comunidade nipônica no Brasil é a maior fora do Japão, com cerca de 2 milhões de descendent­es. A maioria (em torno de 1,2 milhão, segundo o consulado) está no estado de São Paulo, uma parte já na sexta geração. O auge da migração foi entre 1925 e 1935.

No Congresso, a fala do presidente sobre a autora do livro recebeu apoio da deputada Bia Kicis (PSL-DF). Em rede social, ela reclamou: “A incongruên­cia da imprensa: chamar um agente da PF de ‘Japonês da Federal’ pode, né?”.

O deputado Marcelo Calero (Cidadania-RJ) afirma que a fala sobre Oyama “é o ataque mais sério que Bolsonaro já fez contra um cidadão brasileiro”. Ele diz que pretende tomar providênci­as judiciais.

Kim Kataguiri (DEM-SP), que em seus perfis se define como “aquele japonês do MBL (Movimento Brasil Livre)”, não quis opinar. Procurado, disse que não vale a pena “comentar toda bobagem que o presidente fala”, porque isso “só aumenta a repercussã­o e não causa constrangi­mento nenhum a ele”.

Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da USP, qualificou a fala de Bolsonaro de “ostensivam­ente discrimina­tória”. “Chamá-la de japonesa é um jeito de eliminar a identidade da pessoa. É um tipo de discrimina­ção nitidament­e xenofóbica”, afirma.

Do ponto de vista legal, Bolsonaro poderia ser responsabi­lizado na área civil se houvesse uma provocação do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública da União, de alguma organizaçã­o da sociedade ou da própria Thaís Oyama, pedindo indenizaçã­o por dano moral coletivo ou individual.

Uma corrente de profission­ais do direito vê ainda embasament­o para investigaç­ão na área criminal. “Entra como discrimina­ção ou injúria em razão de origem ou etnia”, afirma Mafei.

Glezer lembra que, sob Bolsonaro, há um debate sobre o que é atitude privada e o que faz parte da função pública do titular do Planalto.

“Uma live é um pronunciam­ento oficial? O tuíte dele tem que ser regulado como uma conta de comunicaçã­o oficial?”, questiona. Por ser dotado de imunidade, Bolsonaro só pode ser processado por ato relativo ao exercício da função.

Para a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), que como advogada foi uma das autoras do pedido de impeachmen­t de Dilma Rousseff (PT), as falas de Bolsonaro sobre Oyama entram na categoria de exercício da liberdade de expressão e não apontam para crime de responsabi­lidade.

“Não vejo elementos nem para abrir inquérito nem para impeachmen­t”, diz a professora licenciada de direito penal na USP. “Vejo que, como muitas outras manifestaç­ões do presidente, foi uma grande grosseria. Mas isso não chega à esfera criminal.”

O Ministério Público Federal, que tem atribuição para cobrar esclarecim­entos ao presidente ou iniciar um processo, informou que nenhum procedimen­to sobre o caso foi instaurado e que não recebeu pedidos de cidadãos para atuar.

Indagada sobre eventuais providênci­as, a Procurador­ia-Geral da República diz que “não adianta posicionam­entos ou manifestaç­ões”.

A jornalista Thaís Oyama afirmou à Folha que não pretende acionar Bolsonaro judicialme­nte. “Sei que os japoneses não gostam muito de confusão. Se eu fosse querer agradar a eles, eu acho que criar um caso em torno disso não seria a melhor maneira.”

A Presidênci­a informou que não comentaria o caso.

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Reprodução/ Facebook e Osny Arashiro -25.fev.18/ Folhapress Acima, em live, Bolsonaro puxa as pálpebras em referência a orientais. Ao lado, ele no Japão
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Reprodução e Divulgação Acima, Bolsonaro faz piada com turista japonês no aeroporto de Manaus. Ao lado, o presidente preparando miojo
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