Austeridade virou quase palavrão
Desde a crise de 2008 o termo adquiriu status quase que de palavrão
Segundo o Houaiss, austero significa severo, equilibrado, moderado, simples, que exibe autocontrole, parcimônia. Cabe em épocas tranquilas praticar a austeridade do dicionário; conduzir a economia de modo a evitar grandes desequilíbrios.
No mundo da economia, a palavra austeridade tem sido usada para caracterizar cortes de gastos do governo e aumento de impostos, em geral durante momentos de crise, com custos sociais e políticos elevados. Seria uma espécie de austeridade emergencial. Não surpreende, portanto, que desde a grande crise de 2008-09 o termo tenha adquirido o status quase que de palavrão.
As críticas à austeridade têm inspiração keynesiana. Sua origem histórica vem do entendimento de que a manutenção da disciplina fiscal no início da década de 1930 foi um grave erro, pois transformou uma recessão na Grande Depressão. Posto de outra forma, a cautela com o gasto durante um momento de incerteza, algo razoável para pessoas e empresas individualmente, provocou uma espiral coletiva recessiva, que foi agravada pela obsessão com o equilíbrio fiscal do governo americano. A inovação de Keynes foi propor que o governo gastasse mais, de forma a compensar a queda na demanda privada e assim estancar a espiral.
Cientes dessa lição, nas grandes crises recentes (americana em 2008-09 e europeia em 2011-12) muitos países responderam com políticas econômicas expansionistas, tanto monetárias quanto fiscais. Evitouse assim uma nova depressão, que parecia provável dadas as
imensas fragilidades financeiras de então, maiores do que as da década de 1930. A expansão fiscal (e creditícia) chinesa em 2009 certamente foi a mais espetacular da história, assim como foram as inimagináveis
taxas de juros em torno de zero praticadas pelo Fed e pelo Banco Central Europeu.
Mas nem todos puderam fazer o mesmo. Na crise, países já muito endividados ou financeiramente vulneráveis perderam acesso ao mercado de crédito e acabaram tendo que fazer cortes em gastos e aumentos em impostos justamente quando menos podiam. Nessa situação se viram Grécia, Portugal e Irlanda. Espanha e Itália menos, mas foram afetadas. Todos haviam se endividado a taxas baixas durante a eufórica fase inicial do euro, sobretudo a Grécia, que tomou um verdadeiro porre. Não foram, portanto, vítimas apenas de um choque externo. A austeridade emergencial só não foi maior porque esses países contaram com empréstimos do FMI e (indiretamente) do Banco Central Europeu, que fez merecida fama dizendo que “faria o que fosse necessário” para evitar o colapso do euro.
Nós aqui no Brasil conhecemos bem essa situação. Em várias épocas de liquidez internacional abundante acumulávamos dívidas em moeda estrangeira. Em algum momento a liquidez inevitavelmente secava e/ou as contas externas pioravam, e a crise cambial se instalava. Para evitar a moratória e suavizar os ajustes necessários, se apelava
para empréstimos do FMI. Mas mesmo com apoio externo, ainda se fazia necessário algum aperto fiscal e monetário de emergência, feito sem planejamento, e justamente quando a sociedade estava mais vulnerável.
Tipicamente nesses momentos o FMI levava a culpa pela austeridade emergencial, percebida como uma imposição. Mas, na verdade, sem o financiamento do FMI o aperto teria sido maior ou, se insuportável, levaria a uma moratória. Em ambos os casos o dano social teria sido ainda maior.
No Brasil, a partir de 2014, a crise foi interna: houve um enorme colapso de disciplina fiscal. A decorrente perda de confiança empurrou a economia em profunda recessão.
Não foi possível evitar a austeridade emergencial. Ainda estamos nesta fase, mas repito: o mal já tinha sido feito. Sem o início do ajuste fiscal, teria sido bem pior.
Claramente as crises que levam à austeridade emergencial devem ser evitadas. Como? Segundo o dicionário Houaiss, austero significa severo, equilibrado, moderado, simples, que exibe autocontrole, parcimônia. Cabe em épocas tranquilas praticar de forma rotineira a austeridade do dicionário. Ou seja, conduzir a economia de forma a evitar grandes desequilíbrios e fragilidades, notadamente os de natureza social, orçamentária, bancária e cambial. Vale aqui uma analogia médica: quem segue hábitos saudáveis vive bem e aguenta melhor a doença quando ela aparece.