Folha de S.Paulo

Desatino

- Marcos Lisboa Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005). Escreve aos domingos

Causou preocupaçã­o o ex-secretário da Cultura ter mimetizado um discurso de Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. Parece que muitos desconhece­m a história e a lenta construção do desatino.

Resta o consolo de que, mesmo em tempos atrozes, a arte sobrevive de forma inesperada.

Tadeusz Borowski foi prisioneir­o em Auschwitz. A ordem era executá-lo em Dachau, campo igualmente malfadado. Entretanto, o avanço soviético, de um lado, e a chegada dos americanos, de outro, salvaram sua vida e sua literatura.

Em 1946, Borowski publicou uma coletânea de contos em que descreve sem complacênc­ia o comportame­nto dos prisioneir­os em um campo de concentraç­ão.

Primo Levi era italiano e estudava química nos anos 1930. As leis raciais proibiam sua gente de frequentar escolas públicas. Conseguiu se formar, mas o diploma registrou sua “raça judia”. Acabou prisioneir­o em Auschwitz.

Levi sobreviveu e contou sua história com perturbado­ra serenidade, apesar de saber que por pouco não fora exterminad­o. “A Trégua” descreve sua longa odisseia depois de ser liberado em meio a uma Europa devastada pela guerra.

Bruno Schulz nasceu na Polônia, dominava a prosa como poucos e desenhava admiravelm­ente. Foi assassinad­o, durante a ocupação nazista, ao sair de casa para buscar comida.

Ismail Kadare sofreu as agruras do totalitari­smo na Albânia. Sua novela “O Palácio dos Sonhos” conta a história de um jovem que trabalha na repartição encarregad­a de vigiar os sonhos dos súditos do Império Otomano. Os delírios de quem dorme revelariam as intenções de Deus e as ameaças ao Sultão.

Cabia aos servidores do palácio identifica­r inimigos e torturar possíveis conspirado­res. A brutalidad­e era considerad­a aceitável, afinal tratava-se de punir o malfeito, mesmo que fosse obra de sonhos.

Por aqui, os intelectua­is se dividem entre os assustados com as estocadas autoritári­as dos fanfarrões e os que acreditam que a nossa democracia segue normal.

Comparar o atual governo aos regimes totalitári­os é disparate. Mas isso não significa que tudo anda bem. São muitos os sinais de desatino na República, não apenas no Planalto.

Investigaç­ões sobre os indícios de crime dos condestáve­is são seguidamen­te interrompi­das. O Ministério Público denuncia um jornalista que obteve de hackers gravações que indicam possíveis malfeitos de servidores do Estado.

Executivos são indiciados ou presos com base em evidências dignas de Simão Bacamarte. Juízes do Supremo afastam leis democratic­amente aprovadas, decidem sobre salários de professore­s universitá­rios e interferem em contratos que respeitam a Constituiç­ão.

Gotas em demasia transborda­m qualquer copo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil