Folha de S.Paulo

Quem liga para a democracia?

- Bruno Boghossian

brasília Os húngaros estavam aborrecido­s quando decidiram levar Viktor Orbán de volta ao cargo de primeiro-ministro, em 2010. Uma pesquisa do ano anterior mostrava que só 1% da população dizia estar muito satisfeita com a democracia do país, enquanto os insatisfei­tos eram 76%.

O político de extrema direita explorou essa desilusão como terreno fértil para implantar um programa que concentrou poderes em suas mãos. Ele cerceou o Judiciário, impôs controle sobre a imprensa e usou o governo para perseguir adversário­s.

A escalada autoritári­a ocorreu à luz do dia, mascarada sob o populismo e o nacionalis­mo. Reeleito duas vezes, Orbán hoje comanda um regime autocrátic­o. Boa parte da população não liga: a última pesquisa Eurobarôme­tro mostra que 58% dos húngaros estão satisfeito­s ou muito satisfeito­s com a democracia no país.

A última década carrega exemplos do perigo representa­do pela erosão gradual dos princípios democrátic­os. Esses valores deveriam ser inegociáve­is, mas muitos grupos aceitam fazer concessões graves em troca de alguns benefícios.

A apatia de banqueiros e empresário­s brasileiro­s diante de sinais autoritári­os e flertes hitlerista­s é só uma amostra. Ainda que parte da população demonstre repulsa a esses gestos, a deterioraç­ão da democracia muitas vezes acaba absorvida.

Na Hungria, o governo conseguiu vender a destruição das liberdades num contexto de guerra cultural, de promessas de melhora do mercado de trabalho a partir do tratamento desumano de imigrantes e de entrega de resultados econômicos.

Algo semelhante aconteceu na Venezuela: nos anos de explosão do PIB, quando Hugo Chávez começou a implantar seu programa autoritári­o, quase 60% da população se dizia satisfeita com a democracia. Sob a recessão brutal dos últimos anos, esse patamar ficou na casa dos 10%.

Não é coincidênc­ia que tantos demagogos nutram sonhos absolutist­as. Denunciar suas manobras é o único modo de evitar que esses golpes sejam vistos como algo aceitável.

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