Folha de S.Paulo

Livro traça perfil de primeiras-damas ofuscadas

Obra resgata histórias das esposas dos presidente­s desde o século 19 e aponta marcos na área de assistênci­a social

- Paula Sperb

porto alegre A história das mulheres dos casais presidenci­ais é também um retrato dos 130 anos da República brasileira. Ao se observar as trajetória­s das primeiras-damas, porém, é possível perceber que nem tudo mudou desde 1889.

Aquela que inaugura a função, Mariana Meireles, casada com o marechal Deodoro da Fonseca, chegou a interceder junto ao então ministro da Fazenda, Rui Barbosa, por empregos no poder público para pessoas próximas.

A história dela compõe uma série de 34 perfis de primeirasd­amas da obra “Todas as Mulheres dos Presidente­s” (2019, Máquina de Livros), pesquisa dos jornalista­s Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo.

“O panorama mostra a evolução da condição das mulheres no Brasil e a questão de gênero. Fizemos um levantamen­to e apenas três tinham formação universitá­ria. Mas isso não era necessaria­mente uma opção. A sociedade colocava essas mulheres como dona de casa. Eram mulheres do lar, mas o lar era o palácio”, afirma Melo.

Para Guedes, jogar luz sobre a história das mulheres da República revela um machismo estrutural.

“Elas se casavam muito novas, algumas com 14 anos. Até a fisiologia feminina foi alterada ao longo do período. Inicialmen­te, tinha essa obrigatori­edade de ter muitos filhos. Elas tinham que ser a grande anfitriã dos palácios, as mães da nação, não importava se estavam felizes ou infelizes, uma subjugação da personalid­ade”, diz a autora.

Além do grau de escolarida­de, chama a atenção a idade das primeiras-damas ao se casarem: três delas tinham 14 anos e 13 das 34 tinham menos de 20 anos na data do matrimônio. O presidente Hermes da Fonseca era 31 anos mais velho que a sua segunda esposa, Nair de Teffé von Hoonholtz —ela tinha 27 e ele 58.

Nair era poliglota, estudou na Europa e foi a primeira caricaturi­sta do Brasil, publicando na revista Fon-Fon. Ao se casar, abdicou da atividade. “Ela se anula e vive em função do marido”, conta Melo.

A obra apresenta as personagen­s com o nome de solteira, como forma de reconhecer sua importânci­a, e não usa o pronome de tratamento “dona”. A opção por evitar o termo, dizem os autores, está relacionad­a ao sentido comumente pejorativo.

A primeira-dama Ruth Leite, mais conhecida pelo sobrenome de casada com Fernando Henrique Cardoso, era chamada de “dona Ruth” em vez de “doutora Ruth” já que tinha o título acadêmico, justificam. Já a ex-presidente Dilma Rousseff era chamada de “dona Dilma” especialme­nte por adversário­s, acrescenta­m.

Aliás, o livro reserva um espaço para o único quase “primeiro-cavalheiro” do país, Carlos Araújo, ex-marido de Dilma. Quando ela assumiu a Presidênci­a, já era divorciada.

Divórcio não era opção para primeiras-damas. A maioria foi obrigada a conviver, não necessaria­mente tolerar, a infidelida­de dos presidente­s. Um dos episódios emblemátic­os é o caso extraconju­gal de Getúlio Vargas com Aimée Sotto Mayor Sá, casada com um assessor. O livro avança sobre relatos mais recentes.

A história de traições começa já com Deodoro da Fonseca. Mariana, sua mulher, foi retratada sem rosto, de costas, em um quadro de Gustavo Hastoy. Apesar disso, ela também deixou sua marca e ajudou a criar uma escola para meninas pobres, que oferecia noções domésticas, de acordo com a realidade da época.

Mariana inaugura, assim, o que seria praticamen­te tradição das primeiras-damas: a assistênci­a social, que se consolidou com a chegada de Darcy Lima Sarmanho.

Casada com Vargas, em 1931 ela realizou o “Natal dos Pobres” para 10 mil pessoas no Palácio do Catete. Em 1953, a festa foi transferid­a para o Maracanã, para 110 mil pessoas, a maioria crianças. Em 1942, fundou a Legião Brasileira de Assistênci­a (LBA).

“Cuidar da assistênci­a social não era função do Estado, mas das santas casas, das entidades religiosas. Darcy muda isso ao criar a LBA, que reflete muito a época. Getúlio era o pai dos pobres, e ela era a mãe”, diz Melo.

Depois de Darcy, Maria Thereza Fontella foi a primeirada­ma que possivelme­nte mais se dedicou à legião. Também é lembrada por ter sido exilada com o marido, João Goulart, após o golpe de 1964.

No perfil, há o relato da prisão pela ditadura durante viagem pelo Rio Grande do Sul, quando foi obrigada a ficar nua na delegacia. Ela comentou o caso à Folha em entrevista em 2019, quando foi lançada sua biografia. “Meu marido nunca ficou sabendo”, disse.

Depois de Darcy, o marco na área social é resultado do trabalho de Ruth Leite, esposa de Fernando Henrique Cardoso.

“Ao assumir esse cargo, ela revolucion­a. Ruth dá um caráter de política social pública, integra os ministério­s, comanda as diretrizes. Ela criou o ‘Comunidade Solidária’ para promover alfabetiza­ção e segurança alimentar”, diz Melo.

Para Guedes, outra que merece reconhecim­ento pelo seu trabalho é Sarah Luísa Gomes de Sousa Lemos, casada com Juscelino Kubitschek, e que defendeu a história do presidente após a morte dele.

Apesar do legado de diminuição da desigualda­de no país do ex-presidente Lula, a primeira-dama Marisa Letícia Rocco Casa não é lembrada por ações voltadas ao social. Para a dupla de autores, a última primeira-dama com protagonis­mo foi Ruth Leite.

“Acho uma pena. No governo Dilma, não havia essa figura de primeira-dama. Com o Temer, chega a Marcela. Ela poderia ter se manifestad­o de alguma forma. É um lugar privilegia­do, tudo que se fala repercute. Com o Bolsonaro, temos a Michelle. Ela teve aparição na posse, mas os programas para surdos não são uma política de força. Darcy, Sarah e Ruth mostraram que é possível amplificar a voz dos miseráveis”, afirma Guedes.

Para a autora, uma bandeira que poderia ser levantada é o combate ao feminicídi­o. As novas gerações, diz ela, já pensam diferente. “Minhas netas não falam em ser primeiras-damas, querem ser presidente­s.”

Todas as Mulheres dos Presidente­s Autores: Ciça Guedes e Murilo Fiuza de Melo. Ed.: Máquina de Livros. R$ 45 (336 págs.)

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1 Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, em foto de 1940 2 Maria Thereza Goulart, esposa do presidente João Goulart, em registro antes do golpe militar de 1964 3 Ruth Cardoso, mulher do presidente Fernando Henrique Cardoso, durante entrevista no Ministério do Bem-Estar Social
Jefferson Rudy -24.jan.96/Folhapress 3 1 Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, em foto de 1940 2 Maria Thereza Goulart, esposa do presidente João Goulart, em registro antes do golpe militar de 1964 3 Ruth Cardoso, mulher do presidente Fernando Henrique Cardoso, durante entrevista no Ministério do Bem-Estar Social
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