Folha de S.Paulo

Arte de rua preserva história de protestos no Chile

- João Perassolo

santiago e são paulo Quem anda pelas ruas de bairros centrais de Santiago se depara com paredes de prédios tomadas por arte de protesto. Cartazes, adesivos, pichações, grafites e instalaçõe­s se espalham entre os bairros de Providenci­a e Belas Artes, servindo de testemunho visual dos atos contra Sebastián Piñera que assolam o Chile desde outubro.

Como forma de preservar a história dos protestos, um grupo de oito amigos começou a emoldurar determinad­as obras, criando uma espécie de museu a céu aberto.

O coletivo, que atende por Museo de La Dignidad (museu dadignidad­e),colocaumam­olduradour­adaaoredor­decartazes e pichações e posta no Instagram a foto com a localizaçã­o,onomedoart­ista,atécnica usada e o ano de produção — como num museu tradiciona­l.

As obras são escolhidas a partir de caminhadas dos integrante­s do grupo e “respondem mais ao clamor social do que a um setor político”, segundo um deles —que não quis se identifica­r pois responde pelo coletivo. São incluídos no “museu” trabalhos que ressaltem a dignidade —demanda central dos manifestan­tes, de acordo com ele— e figuras relevantes dentro da história da atual convulsão social.

Uma das primeiras colagens emoldurada­s foi uma releitura da “Guernica”, de Picasso, feita por Miguel Ángel Castro. Em um painel, o artista represento­u o incêndio das estações de metrô, a alta quantidade de gás lacrimogên­eo usada pela polícia e os “olhos feridos”, referência aos que ficaram cegos em decorrênci­a da violência das forças de segurança.

Outro trabalho destacado é uma ilustração que representa o cachorro Negro Matapacos como se fosse um tigre, de Tomas Saavedra. O cão preto com uma bandana vermelha em volta do pescoço virou um dos símbolos dos protestos.

Sua imagem, onipresent­e em Santiago (e que apareceu recentemen­te em um canteiro da avenida Paulista, em São Paulo), é inspirada em um cachorro real que acompanhav­a estudantes nos protestos pelo ensino gratuito de 2011.

Uma rápida busca na internet traz vídeos e fotos do destemido cão na linha de frente dos atos, ladrando para militares com olhar raivoso. Embora

o animal nunca tenha efetivamen­te machucado um soldado, sua bravura lhe rendeu o apelido Negro Matapacos — algo como negro que mata policiais—, além de status de estrela entre os manifestan­tes.

“Os atuais protestos por justiça social e reforma socioeconô­mica no Chile têm muito em comum com os de 2011. Faz sentido que o Negro Matapacos continue um símbolo poderoso”, diz Alexandra Isfahani-Hammond, da Universida­de da Califórnia, em San Diego, que estudou a consciênci­a em animais e escreveu sobre o cão chileno. “Ele defendeu os marginaliz­ados contra a violência do estado autoritári­o.”

Até agora, o coletivo emoldurou 14 obras pelas ruas de Santiago, nos arredores da praça Baquedano, onde os protestos são diários desde que a convulsão estourou. Algumas já tiveram os caixilhos removidos, afirma um dos integrante­s do grupo, reconhecen­do o caráter efêmero da arte de rua.

Mas isso não parece incomodá-los; outro dos objetivos do Museo de La Dignidad é revelar nomes alheios às instituiçõ­es tradiciona­is de arte. “No Chile, a arte de rua sempre esteve à sombra da elitização dos museus; quando nosso museu aparece, um valor extra é atribuído à rua e suas obras.”

 ?? Museo de La Dignidad no Instagram ?? Releitura de ‘Guernica’ feita por Miguel Ángel Castro, em parede de Santiago e emoldurada por coletivo
Museo de La Dignidad no Instagram Releitura de ‘Guernica’ feita por Miguel Ángel Castro, em parede de Santiago e emoldurada por coletivo

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