Folha de S.Paulo

O mercado e a moral

Mercado erra, mas não em razão de ser imoral; se fosse moral, erros não seriam menores

- Samuel Pessôa Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultori­a Reliance. É doutor em economia pela USP

Na sexta-feira (17), há duas semanas, descobrimo­s que o secretário da Cultura era (ou pelo menos pareceu ser) nazista.

Essa conclusão segue a de o secretário ter empregado claramente texto e estética nazistas para divulgar uma ação de sua secretaria.

A sociedade respondeu prontament­e. A política esteve vigilante. Os presidente­s da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre, produziram tempestiva­mente notas de repúdio. Não restou outro caminho ao presidente que não a demissão sumária do secretário.

Difícil saber o que significou o experiment­o do secretário. Parece que se trata de tatear os limites da democracia. A democracia requer que todos estejamos vigilantes. A sociedade passou com louvor no teste.

Um tema que incomodou foi a coincidênc­ia de naquela sexta-feira, simultanea­mente à divulgação do vídeo, os mercados financeiro­s terem operado em alta.

Vários motivos podem explicar os movimentos daquela sexta. Movimentos dos mercados internacio­nais, que geralmente guiam nosso mercado doméstico,

bem como a “devolução” (movimento em sentido inverso) em seguida à piora causada pela divulgação de números ruins para a economia brasileira referentes a novembro.

Após resultados ruins para a indústria, os serviços e o varejo, houve na quinta (16) a divulgação, pelo BC, de que a economia como um todo caminhara bem em novembro. É comum haver discrepânc­ia em diferentes termômetro­s da atividade econômica no curtíssimo prazo. O mercado, arisco, tende a ir para lá e para cá nessas ocasiões.

A questão é: pode-se esperar do mercado um comportame­nto que julgue moralmente fatos sociais relevantes?

Por exemplo, ao sabermos que o secretário de Cultura é nazista (ao menos que cultua símbolos nazistas), os preços de mercado deveriam cair?

Os mercados só cairiam se esse fato sugerisse aos operadores, gente que compra e vende, que o desempenho da economia iria ser pior do que seria antes de que essa informação fosse revelada.

Também cairia se os operadores, mesmo consideran­do que a economia não pioraria, achassem que os outros operadores pensariam que a economia iria piorar.

É essa a estrutura de incentivos que regula a atividade de compra e venda de ativos financeiro­s, cuja agregação para todas as pessoas que trabalham nesse setor chamamos de mercado financeiro.

Mas os mercados erram. Erram coletivame­nte. É verdade. Mas eles não ocorrem em razão de uma certa imoralidad­e do mercado. Se ele fosse moral, em algum sentido, não me parece que os erros em termos econômicos seriam menores.

Por outro lado, é impossível que uma estrutura descentral­izada opere de forma contrária aos incentivos que a regulam.

Os mercados erram —não previram o crash de 1929, que levou à Grande Depressão, nem a crise de 2008— pois há uma grande assimetria em sua estrutura de incentivos. Errar sozinho é muito pior que errar coletivame­nte. E ganhar sozinho é melhor, mas não muito melhor, do que ganhar coletivame­nte.

Para complicar a vida, para acertar, não é suficiente encontrar inconsistê­ncias e operar na direção contrária. É necessário acertar o momento em que essas inconsistê­ncias produzirão alteração nos preços e operar um pouco antes.

Várias pessoas enxergaram corretamen­te as inconsistê­ncias no mercado de hipotecas americano nos anos 2000. Muitas delas com antecedênc­ia demais e acabaram perdendo (ou deixando de ganhar) dinheiro.

A defesa da democracia é imperativo moral de cada cidadão e das instituiçõ­es que representa­m a cidadania.

Já o mercado financeiro requer regulação eficiente. Que seja simples e transparen­te e que alinhe incentivos privados aos sociais. Fácil de escrever, difícil de efetivar. Mas isso é outra história.

| dom. Samuel Pessôa | seg. Marcia Dessen | ter. Nizan Guanaes, Cecilia Machado | qua. Helio Beltrão | qui. Cida Bento, Solange Srour | sex. Nelson Barbosa | sáb. Marcos Mendes, Rodrigo Zeidan

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