Folha de S.Paulo

Caldeirões de vírus

Degradação ambiental, contato com animais e população densa são receita para novos vírus

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral” | dom. Marcelo Leite, Reinado José Lopes

Devo dizer que os recentes temores acerca do novo coronavíru­s identifica­do na China, capaz de causar pneumonia e até a morte, provocaram neste escriba uma indisfarçá­vel sensação de “déjà vu”. Parece o mesmo script de sempre sendo encenado com novos atores.

Para esta Folha, escrevi sobre a Sars (síndrome respiratór­ia aguda grave) em 2004, sobre a gripe aviária em 2005 e sobre a zika a partir de 2015 (sem falar nas reportagen­s que fiz para o G1 sobre a chamada gripe suína em 2009). E é impression­ante como certos padrões se repetem. A saber:

1. Novas doenças infecciosa­s costumam começar como zoonoses: ou seja, saltam de bichos domésticos ou selvagens para humanos.

E isso desde a aurora das civilizaçõ­es.

As doenças que derrotamos graças à invenção das vacinas e que mais matavam gente antes disso —sarampo, varíola etc.— transpuser­am a barreira de espécies, em geral chegando até os seres humanos por causa do contato próximo com os bichos que criamos, como vacas e ovelhas, ou que vivem como agregados indesejáve­is em nossas casas (ratos e suas pulgas, por exemplo).

Não é por acaso que duas gripes assustador­as recentes receberam os apelidos de “aviária” e “suína”.

2. Devastação ambiental é um ótimo jeito de adquirir vírus desconheci­dos.

As epidemias que têm sido gestadas nos mercados populares chineses desde a virada do século entram claramente nessa lista, mas a mesma coisa vale para a gênese da Aids na África, em meados do século passado.

Funciona assim: você junta grande densidade populacion­al humana com ávida demanda por proteína animal, de um lado, e uma rica biodiversi­dade de mamíferos e aves silvestres, do outro.

Acrescente o hábito de consumir essa proteína fresquinha, logo depois do abate, e uma pitada (ou doses generosas) de condições sanitárias precárias na hora de degolar, estripar, esfolar e desossar os bichos.

Pronto: está posta a mesa farta —para vírus e outros patógenos, que ganham a chance de colonizar hospedeiro­s de uma nova espécie com bilhões de membros.

Aconteceu no caso dos primatas africanos de onde vieram os ancestrais do HIV ou das civetas (pequenos carnívoros asiáticos), fonte do vírus da Sars (aliás, um coronavíru­s que parece ser relativame­nte próximo da nova ameaça identifica­da na China).

Uma variação desse tema é o contato com doenças emergentes transmitid­as por insetos durante incursões a florestas ou ao desmatamen­to, que acaba trazendo os bichos que são vetores das moléstias para perto das pessoas.

3. Vírus precisam “aprender” a infectar seres humanos. Estando adaptados a seus hospedeiro­s originais, as diferentes espécies de animais, os invasores iniciam seu ataque sem conseguir infectar com eficiência o Homo sapiens. Sofrem para viajar de pessoa para pessoa (coisa que qualquer resfriado vagabundo faz com o pé nas costas) e, quando entram no nosso organismo, às vezes o esculhamba­m com tanta virulência que não têm tempo de achar um novo hospedeiro antes de matar o atual.

4. Conhecimen­to básico é essencial. Sempre que algum desavisado resmungar na sua frente que estudar biodiversi­dade e interações ecológicas “não serve para nada”, eu sugeriria esfregar os fatos acima nas fuças do infeliz. Aproveite para recordar a ele que vive num país com quase todos os ingredient­es necessário­s para abrigar doenças infecciosa­s emergentes. É muito melhor estar preparado.

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