Folha de S.Paulo

Em SP, passe livre é só para os piores homens

Não é o anticapita­lista do MPL, movimento que se descreve como independen­te, o que carece de lideranças; é o país

- Marilene Felinto Escritora, escreve na Folha duas vezes por mês; marilenefe­linto.com.br

Os piores homens, como já dizia o escritor Leon Tolstói, estão em certa classe de políticos. O anarquista russo Tolstói (1828-1910) já comentava, em 1904: “É evidente que o poder —que para ser bem feito deveria estar nas mãos dos melhores homens— encontra-se sempre nas mãos dos piores, pois os melhores homens, por causa da essência do poder em si, que consiste no emprego da violência para com os demais, não podem desejá-lo, e, por esta razão, jamais o alcançam ou conservam” (“A Insubmissã­o e Outros Escritos”, Ateliê Editorial).

Os piores homens podem ser qualificad­os hoje como aqueles que representa­m, em tudo, a “masculinid­ade tóxica” (termo do novo feminismo) no poder. Em São Paulo, a figura do governador João Doria (PSDB) é o exemplo típico.

No governo do Estado de São Paulo, têm se sucedido há mais de 30 anos esses homens da pior espécie. Anterior a Doria, por exemplo, foi o governo de Geraldo Alckmin, que aplicou violência extrema na repressão contra manifestaç­ões populares de oposição, do Movimento Passe Livre a estudantes secundaris­tas que ocuparam escolas públicas em 2015.

Esses governante­s são em geral personalid­ades públicas insignific­antes, “néscias”, como diz Tolstói, mas que, num esquema muito bem organizado, e “quase por ação reflexa, por instinto de salvaguard­a, tomam apenas precauções contra a revolução, e sempre, sem fazer qualquer esforço, sufocam as tímidas tentativas de rebelião que os revolucion­ários às vezes costumam fazer, não conseguind­o com isso senão aumentar o poder dos governos”.

Esse governos atuam como tropa, também segundo a definição tão antiga e tão atual de Tolstói, a despeito do quanto estejam fora de uso termos como “revolução”.

“Todo feudo dinástico ou político, as execuções que se efetuam nesses feudos, a repressão das rebeliões, a participaç­ão militar na dispersão de manifestaç­ões populares e na repressão das greves, todas as extorsões em matéria de impostos, a injustiça sobre o monopólio da propriedad­e agrícola, as restrições à liberdade de trabalho —tudo isso se realiza, se não diretament­e pela tropa, ao menos pela polícia respaldada pela tropa”.

As ideias do escritor russo ilustram a postura do governo Doria, em São Paulo, diante das tentativas de contestaçã­o popular contra o aumento na passagem de ônibus e trens desde 1º de janeiro: em uma das manifestaç­ões mais recentes, em 16 de janeiro, organizada pelo MPL, as forças policiais de Doria não permitiram sequer que a manifestaç­ão de rua se mexesse, saísse em passeata pelo trajeto previament­e combinado.

A passeata foi sufocada antes mesmo de ocorrer, fato raro no Brasil pós-ditadura. O ato em si de protesto impression­ava menos do que a atuação violenta da polícia, que feria e prendia pessoas que se manifestav­am pacificame­nte.

É notória a desmobiliz­ação dos movimentos de contestaçã­o (de esquerda) país afora hoje. Nas convocaçõe­s do MPL, por exemplo, o discurso parece não se sustentar nas próprias pernas. Na página do Facebook do movimento, a chamada para as manifestaç­ões se dá com palavras de ordem desgastada­s —“Não podemos recuar”, “Devemos nos manter firmes na luta”, “Convidamos geral a continuar ocupando as ruas e pulando as catracas!”—, slogans que não correspond­em à realidade do que ocorre nos protestos.

Os trabalhado­res não participam, as ruas não são ocupadas, nem catracas são puladas. Aliás, não houve até agora, em nenhuma das três manifestaç­ões do MPL em 2020, em São Paulo, informação sobre o número de participan­tes dos atos, tão irrelevant­e deve ser.

Claro que o fenômeno do esvaziamen­to não é atributo do MPL. Ele se inscreve, em palavras de Wanderley Guilherme dos Santos, “no processo de profunda ruptura civilizató­ria em que a ideia de democracia como liberdade e autonomia submerge diante da versão de democracia como riqueza sem limite legítimo e poder sem constrangi­mento e afronta”.

É o ocaso, como já constatara­m tantas análises sociológic­as aqui e ali, da Primavera Árabe —manifestaç­ões de massa na África e no Oriente Médio contra governos de países como Egito e Tunísia, que tiveram início em 2010—, digamos assim, em terras brasileira­s, onde manifestaç­ões de rua seguem perdendo força.

Em uma das mais acertadas análises das manifestaç­ões de junho de 2013 no Brasil, Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019) diz que da experiênci­a participat­iva anárquica contra todos os governos e todos os partidos, nada restou, na verdade.

É também de Santos a avaliação de que “a frustrante Primavera Árabe, inesperado dominó a derrubar tirania após tirania, cedeu à insuficiên­cia de propósitos e à ausência de lideranças organizaci­onais, recaindo, país a país, no ramerrão das ditaduras tradiciona­is” (“A Democracia Impedida: O Brasil no Século 21”, editora FGV).

Não é o anticapita­lista do MPL, movimento que se descreve como independen­te, horizontal (sem hierarquia e sem direção centraliza­da), apartidári­o (mas não antipartid­os), aquele que carece de lideranças organizaci­onais —é o país que carece, e que teve o poder usurpado por um grupo de tiranos brutamonte­s desde 2016.

São Paulo, com passe livre somente para os piores homens, tem sido governado por uma tropa ainda pior do que a do nazifascis­mo bolsonaris­ta: porque são homens treinados em outra ferramenta além da pistola, do cassetete, da bala de borracha, do spray de pimenta —treinados na ferramenta igualmente letal da câmera, da imagem, da propaganda, do espetáculo de mídia.

João Doria é um empresário, homem da televisão e do marketing —a quem o MPL ainda chama de “playboy”, mas que também se encaixa na qualificaç­ão de “mauricinho” ou “yuppie”, um executivo rico, bem remunerado, dado à ostentação, que gasta seu dinheiro com extravagân­cias, roupas de grife, eventos e lugares da moda da classe alta.

João Doria atua na sintonia da encenação, para aquém da verdade política, para aquém da coisa pública. Apoia-se na imagem do “gestor” que “limpa” o terreno que governa, ainda que para isso tenha que dar ordem à tropa para dispersar o povo trabalhado­r na base do porrete, para ferir (para matar?).

Não admite manifestaç­ões de rua que possam manchar o “visual” de seu governo, voltado aos interesses de sua classe social. Sabe da importânci­a da imagem como instrument­o de exercício do poder e do controle social.

O anarquismo pacifista de Tolstói, cujo ideário político inspirou líderes como Mahatma Gandhi e Martin Luther King Jr., não tinha ainda como prever o grau de atrocidade­s dos governos de hoje.

Os piores homens que governam São Paulo há décadas são verdadeiro­s micróbios, para usar outra expressão de Wanderley dos Santos (sobre os operadores do golpe de 2016, do qual o governo Doria é resultado direto): são membros de grupelhos “a que chamarei [...] de micróbios, em referência à sua escala reduzida, por seu elevado potencial destrutivo e a completa impotência criadora. Esses micróbios [...] só desaparece­m por exaustão de sua vida útil; de certa forma, são anaeróbico­s, sucumbem à continuada exposição pública”. Que seja logo.

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Jardiel Carvalho/Folhapress Ato em frente ao Municipal de SP

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