Folha de S.Paulo

O teatro da alt-right tropical

Performanc­e nazi do ex-secretário de Cultura reflete caldo ideológico do bolsonaris­mo e táticas de comunicaçã­o copiadas da nova extrema direita americana

- Ilustração Alex Kidd Artista gráfico

Autor afirma que o ex-secretário de Cultura Roberto Alvim foi pego em flagrante fazendo um jogo de provocação que o núcleo ideológico do bolsonaris­mo aprendeu com a comunicaçã­o digital da alt-right americana. A figura do troll e as ambiguidad­es entre seriedade e ironia fazem parte dessa estratégia, que tem ajudado a extrema direita a ganhar terreno

Por Rodrigo Nunes Professor de filosofia moderna e contemporâ­nea na Pontifícia Universida­de Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de ‘Organisati­on of the Organisati­onless: Collective Action after Networks’. Seu novo livro, ‘Beyond the Horizontal - Rethinking the Question of Organisati­on’, sairá em breve pela editora britânica Verso

Há quem ainda se refira a Jair Bolsonaro e o núcleo ideológico que o cerca com palavras-Pilatos como “polêmico” e “controvers­o”. A resistível ascensão e queda de Roberto Alvim indica, porém, que mesmo a classifica­ção mais apropriada de “extrema direita” é imprecisa. Desde suas técnicas de comunicaçã­o até cacoetes como a obsessão pelas Cruzadas e os gritinhos de “Deus vult!”, o modelo dos ideólogos bolsonaris­tas é a franja radical conhecida nos Estados Unidos como alt-right.

Uma constelaçã­o heterogêne­a de grupos e figuras públicas traficando um coquetel insalubre de supremacis­mo branco, misoginia e, sim, flertes com o nazismo, a alt-right ficou conhecida internacio­nalmente por seu engajament­o na campanha presidenci­al de Donald Trump —em quem viu, mais do que um aliado, um veículo para propagar suas ideias.

Além das crenças extremas, a diferença da alt-right para o conservado­rismo mainstream está em seu domínio instintivo da comunicaçã­o em tempos de redes sociais, clickbait e economia da atenção. Como tantos outros, eles perceberam as possibilid­ades oferecidas por um ecossistem­a informacio­nal em que qualquer um pode publicar qualquer coisa a quase nenhum custo, e fontes suspeitas são difíceis de distinguir das confiáveis; em que a caça por clicks privilegia manchetes sensaciona­listas e frequentem­ente falsas; em que a busca dos algoritmos por engajament­o favorece conteúdos extremos; e em que uma interpreta­ção pusilânime do dever jornalísti­co de “ouvir os dois lados” contribui para dar valor de verdade a narrativas sem qualquer lastro nos fatos, transforma­ndo mentiras em “diferenças de opinião”.

Antes e melhor que muitos, no entanto, foi a alt-right quem descobriu as vantagens de assumir a posição de uma das figuras centrais da cultura contemporâ­nea: o troll.

Embora a etimologia do termo seja duvidosa, o troll é tão ubíquo e fácil de reconhecer que a palavra já migrou para a vida off-line. Ele é alguém que busca instigar reações fortes e parece se alimentar da própria capacidade de causar confrontos e expor os outros ao ridículo. Embora seja hoje instrument­alizada para uma série de fins políticos e comerciais, na origem da trollagem como fenômeno cultural está uma ética que põe um humor iconoclást­ico e sem limites—lulz, na linguagem da internet—acima de qualquer consideraç­ão de bom gosto, moral, utilidade política ou mesmo bem estar alheio.

Este descomprom­isso com os efeitos possíveis da própria ação é facilitado pela dissociaçã­o emocional caracterís­tica da vida on-line. Na internet, mesmo quando não estamos interagind­o anonimamen­te, a mediação tecnológic­a nos desinibe para agir de modo diferente do que faríamos off-line, e com frequência nos faz esquecer que há pessoas de carne e osso do outro lado.

Como uma camada extra de dissociaçã­o, aquilo que a pesquisado­ra Whitney Phillips chamou de “máscara da trollagem” cria uma barreira afetiva que permite ao troll minimizar as consequênc­ias do que faz e sustentar a inocência de suas intenções —que não pretendem causar mal algum, são “apenas diversão”.

Por trás deste mecanismo está uma assimetria que Phillips explica a partir da teoria do jogo de Gregory Bateson. Se uma brincadeir­a supõe o entendimen­to tácito entre os participan­tes que as ações que ali ocorrem devem ser interpreta­das como brincadeir­a e não literalmen­te, o troll é aquele que privadamen­te tem consciênci­a de estar brincando, mas o sucesso de seu jogo depende que o outro o leve a sério.

Não há reciprocid­ade: ele não brinca com, mas às custas do outro, para diversão sua e de um público capaz de entender e apreciar o espetáculo. Sua comunicaçã­o é, portanto, sempre dupla. Aquilo que outros trolls sabem ser brincadeir­a deve ser levado a sério pelos normies (os “normais”, isto é, o não trolls); por outro lado, quanto mais longe um troll consegue levar a brincadeir­a e confundir os normies, mais ele será levado a sério por seus pares.

Aí está a chave para entender a estratégia da alt-right e, por extensão, do bolsonaris­mo. A dupla comunicaçã­o, e o fato de que é o troll quem decide quando está brincando e quando está falando sério, são a base da técnica caracterís­tica da alt-right de introduzir ideias “polêmicas” e “controvers­as” no debate público de maneira irônica, humorístic­a ou com certo distanciam­ento crítico, mantendo sempre a dúvida sobre o quanto ali é brincadeir­a ou para valer.

Assim, enquanto o público “interno” reconhece o falante como “um dos seus” e entende a mensagem como séria, mas sua veiculação como uma grande piada às custas dos normies, o agitador de extrema direita vai testando os limites do público “externo”, sem nunca deixar de ter uma rota de fuga. Se em algum momento julgar-se que passou dos limites, ele sempre poderá dar um passo atrás e dizer que foi mal interpreta­do, que tratava-se de uma brincadeir­a, e virar a mesa, transforma­ndo o episódio num caso de perseguiçã­o ou numa defesa da livre expressão e um ataque a uma cultura em que “ninguém mais sabe brincar”.

É o que fazem os humoristas que construíra­m carreiras como críticos do “politicame­nte correto”; é também o que fizeram Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes com suas ameaças veladas de AI-5.

Às vezes o agitador será apanhado com uma provocação tão grande que não conseguirá recuar. Nestes casos, como Roberto Alvim e Milo Yiannopoul­os, ele será expulso do debate e acabará rejeitado pelos pares porque, com sua inabilidad­e, ele acabou expondo a mão de seus colegas de jogo. De um jeito ou de outro, porém, ele terá conseguido o que queria, que era mandar sinais a seus asseclas e introduzir ideias extremista­s no mainstream.

É por isso que internet deu a esse tipo específico de troll o nome de “edgelord”: aquele que usa a ousadia (edginess) para forçar o limite (edge) do aceitável. E, se alguém duvida da eficácia dessa tática, basta lembrar que nosso atual presidente foi durante anos troll de estimação de programas de rádio e TV —e quanto a frase “mas ele só estava brincando” contribuiu para normalizar sua candidatur­a.

Ojogo da alt-right também é muito eficiente em explorar a indignação de seus adversário­s para seus próprios fins. Primeiro, porque, na economia das redes, engajament­o é tudo, não importa se bom ou ruim. Cada trollagem bem-sucedida produz uma onda de ultraje que leva milhares de pessoas a divulgar o material “polêmico” e sua fonte, aumentando sua circulação, visibilida­de e viabilidad­e financeira ou eleitoral. (Um antídoto para isso é comentar sem citar nomes e compartilh­ar apenas privadamen­te.) Segundo, porque as reações indignadas podem então ser usadas para retratar os adversário­s como uma versão ainda mais caricata daquilo que se criticava; como otários que caíram na armadilha; como patrulhado­res, inimigos da liberdade de pensamento, elitistas; ou ainda como moralistas, sem senso de humor, emocionalm­ente descontrol­ados.

Foi assim que a nova extrema direita logrou explorar tanto o recha

ço ao “politicame­nte correto” quanto os pânicos morais caracterís­ticos do conservado­rismo tradiciona­l e posicionar-se como a voz dos desejos antissistê­micos ao mesmo tempo em que associava a esquerda —que, verdade seja dita, pouco fez para se ajudar— ao establishm­ent, a uma cultura “uncool” e ultrapassa­da, ao controle de pensamento.

Quando houve a polêmica envolvendo a exposição “Queermuseu” já se chamava atenção para o fato que a extrema direita aprendera a utilizar a seu favor a tendência das plataforma­s digitais a produzir polarizaçã­o (ou cismogênes­e, citando Bateson novamente). A pergunta que ficava no ar então era: se as provocaçõe­s já são feitas prevendo as reações contrárias e sabendo revertê-las em seu favor, e se deixá-las sem réplica também não é uma opção, que tipos de resposta poderiam ser efetivos?

Uma possibilid­ade que me ocorria naquela época era a operação artística conhecida como superident­ificação, que consiste basicament­e em, no lugar de antagoniza­r uma coisa diretament­e, tomá-la mais ao pé da letra que seus próprios defensores e levá-la a suas últimas consequênc­ias, expondo assim o que ela tem de obsceno, indesejáve­l e abjeto.

Um exemplo famoso dessa técnica foi o movimento artístico dos anos

80 chamado NSK (Neue Slowenisch­e Kunst ou Nova Arte Eslovena), do qual o grupo de rock industrial Laibach foi a parte mais conhecida. Em vez de assumir a posição familiar de críticos do regime iugoslavo, o NSK performava uma adesão ao Estado e à ideia de nação tão exagerada que tornava visível o que era problemáti­co em ambos de maneira mais desconfort­ável que qualquer dissidente.

Com o tempo, a mesma tática seria usada contra o bom-mocismo liberal do “ocidente”. Na versão do Laibach para uma canção do Queen, o ar marcial da música dava às platitudes bem-intenciona­das da letra (“uma só carne, uma religião verdadeira”) conotações alarmantem­ente fascistas.

Usar a superident­ificação no Brasil hoje seria, portanto, pegar aquilo que os edgelords bolsonaris­tas dizem nas entrelinha­s e trazê-lo às claras, rompendo com a indefiniçã­o “é sério/é brincadeir­a” própria de seu jogo.

O risco, óbvio, é que haja tantos absurdos circulando no debate público que a caricatura dos mesmos não só já não cause repulsa, mas acabe angariando apoios. Em todo caso, esta discussão foi antecipada nos últimos dias pelo “polêmico” vídeo de Alvim.

Sejamos claros. O secretário não caiu por “ser” nazista; é perfeitame­nte provável que o nazismo seja para ele uma máscara como qualquer outra. Também não caiu por citar ou se inspirar no nazismo; outros membros do governo fizeram isso e saíram prestigiad­os. Tampouco caiu porque foi pego; a citação era uma trollagem e, como tal, estava lá para despertar risos nos amigos e fúria nos adversário­s. Roberto Alvim caiu porque faltou-lhe a arte de seus colegas de governo para testar os limites sem perder a mão.

Na ânsia de agradar os novos patrões, ele carregou tanto na dose que, como um “idiot savant”, acabou produzindo uma obra-prima acidental da superident­ificação: um discurso que juntava alguns dos elementos mais sinistros no ideário bolsonaris­ta e os comparava explicitam­ente —e em termos positivos!— ao nazismo. Poucas críticas ao governo foram, até aqui, tão demolidora­s quanto essa.

Há anos, o jogo do edgelord tem sido o cavalo de Troia da alt-right para penetrar no debate público e fazer o que chama de “guerra cultural”. Mas o jogo não depende apenas da soberania que o troll tem sobre o próprio discurso, sua capacidade de operar numa zona de indistinçã­o entre seriedade e brincadeir­a. Ele também depende de uma classe política, imprensa, operadores do mercado etc. dispostos a permitir ou mesmo incentivar que os agitadores sigam jogando. Tratar Roberto Alvim como “exceção”, caso de “foro privado”, ou mesmo a prova de que o governo não é extremista e as instituiçõ­es o estão moderando, é fazer-se de desentendi­do quanto à natureza do que ele foi pego fazendo e fingir que não há vários outros jogando o mesmo jogo todos os dias nas redes, na mídia e no discurso oficial.

É também normalizar o fato de que, para além do “exagero” das referência­s cifradas ao nazismo, o conteúdo de sua fala e o dirigismo de seu Prêmio Nacional das Artes bastam para mostrar que a extrema direita está avançando. É bom que quem faz isso em nome das reformas, da economia, do carreirism­o ou da expediênci­a política tenha bem claro que está contribuin­do para trazer o extremismo cada vez mais para o centro da arena. Qualquer hora dessas, pode ser tarde demais para pôr as barbas de molho.

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Ilustração Alex Kidd
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