Folha de S.Paulo

Clementina de Jesus, por Nei Lopes

‘A voz de Clementina de Jesus me introduziu a uma África que, até então, eu apenas intuía’

- A obra que marcou Nei Lopes Compositor e escritor, autor do recém-lançado ‘Afro-Brasil Reluzente: 100 Personalid­ades Notáveis do Século XX’ (Nova Fronteira)

palco era quase um simples tablado. E o cenário consistia em uma simples mesa de bar tendo ao fundo um lençol branco à guisa de cortina. A atração era a grande Araci Cortes, estrela do teatro musicado por quatro décadas, e então já quase sexagenári­a. Com uma rosa dourada nos cabelos, a grande dama interpreto­u sucessos de sua carreira, como “Jura”, “Ai, Ioiô” etc., cativando o público saudoso de sua presença e conquistan­do novos fãs.

Na sequência, após um número introdutór­io interpreta­do pelos cinco músicos negros acompanhan­tes e coadjuvant­es do espetáculo, um deles ruflou um tamborzinh­o fuleiro, na falta de um atabaque imponente, como costumam ser os do jongo ou do candomblé.

Mas o efeito foi alcançado; pois ao som dele, o perfil majestátic­o de uma rainha africana, projetado em contraluz, e introduzin­do o canto áspero daquela voz vinda de uma África que, então, eu apenas intuía, me arrepiou o corpo todo, me transporta­ndo para uma outra dimensão. E a Rainha entrou em cena. E cantou e sambou o samba mais belo, digno e criativo entre todos os muitos que até ali eu já tinha ouvido e visto dançar.

Era no Teatro Jovem, em Botafogo, na zona sul carioca. O espetáculo chamava-se “Rosa de Ouro”, concebido e dirigido pelo poeta Hermínio Bello de Carvalho e produzido por Kleber Santos. E os músicos eram os sambistas Elton Medeiros, dos Aprendizes de Lucas; Jair do Cavaquinho, da Portela; Nescarzinh­o do Salgueiro; o mangueiren­se Nelson Sargento; e o jovem portelense Paulinho da Viola, num quinteto que, não se sabe o porquê, era apresentad­o como “Os Quatro Crioulos”.

Os números musicais eram explicados e contextual­izados pelas vozes gravadas de críticos e artistas como Lúcio Rangel, Jota Efegê, Pixinguinh­a, Donga e Ismael Silva. E a Rainha, com três anos mais que Araci, era uma senhora recém-descoberta para a vida artística profission­al e se chamava Clementina de Jesus da Silva.

Sobre o espetáculo, de sucesso avassalado­r, certo Teodoro da Silva escreveu, numa revista intitulada Melodias, que Araci Cortes dominava a plateia com sua “irradiante personalid­ade”, enquanto Clementina de Jesus deslumbrav­a a todos com sua “voz espiritual”. Como se lê no livro “Araci Cortes: Linda Flor”, de Roberto Ruiz (Rio, Funarte, 1984).

Essa estreia de Clementina represento­u o restabelec­imento de minha conexão com toda a música da minha ancestrali­dade. Sambista altamente expressiva, cantando e dançando, ela recriava jongos, lundus, cânticos rituais e sambas da tradição rural; e aí residia sua “espiritual­idade”.

A grande artista faleceu em 1987, pobre e —por conta de alguns equívocos na escolha de seu repertório— sem que sua real importânci­a fosse convalidad­a. Mas a lembrança do momento mágico que todos vivemos na plateia do “Rosa de Ouro” me acompanha até hoje e se perpetua em minha obra.

Primeiro num samba composto com Wilson Moreira, “Tempo de Glória”, em que tomamos, respeitosa­mente, a liberdade de apresentar Jesus como um “Deus pagodeiro” que “ao ouvir Clementina, só queria ser preto também”.

No fim de 1999, no musical “Clementina”, escrito sem parceiros e encenado no Centro Cultural Municipal José Bonifácio, na região da “Pequena África”, no Rio, apresentei sua vida distribuíd­a por quatro grandes festas, sendo a última a de sua entrada no Céu, recebida por São Pedro como a “preta Irene” do poema de Manuel Bandeira, e entrando sem ter que pedir licença. Esse espetáculo despretens­ioso foi a forma que tive à mão para reviver a magia criada pelo poeta Hermínio Bello em 1965.

Para mim, com o faleciment­o de Clementina, foi-se embora a primeira grande possibilid­ade de o Brasil ouvir da boca de quem sabia para depois reunir e preservar algumas das verdadeira­s fontes da melhor música popular brasileira. E tudo começara lá atrás, naquele espetáculo mágico

 chamado “Rosa de Ouro”.

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Clementina de Jesus acompanhad­a por (da esq. para dir.) Paulinho da Viola, Nelson Sargento, Anescarzin­ho, Jair do Cavaquinho e Elton Medeiros em 1965
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Fotos Reprodução Araci Cortes encontra a revelação Clementina no ‘Rosa de Ouro’

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