Folha de S.Paulo

Agostinho da Silva, português à solta

- Por Claudio Leal Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

Autor debate as ideias de Agostinho da Silva, filósofo português cuja obra será reunida em edição crítica. Responsáve­l pelo mais recente esforço de modernizar o mito sebastiani­sta para o mundo pós-colonial, o intelectua­l via no Brasil condições para liderar os povos lusófonos

O fascínio despertado em artistas e intelectua­is do Brasil e de Portugal não impediu que a obra do filósofo português Agostinho da Silva perdesse leitores desde a sua morte, em 1994. Contra esse discreto esquecimen­to, a primeira edição crítica de seus textos em ambos os países permite um reencontro com as ideias de um intérprete incomum do mundo luso-afro-brasileiro.

Pós-doutor em filosofia pela Universida­de de Lisboa e professor da Universida­de Federal de Uberlândia, Amon Pinho idealizou e organizou a Biblioteca Agostinho da Silva para recuperar a criação labiríntic­a do mestre português. Apoiada em 20 anos de pesquisas, a coleção editada pela É Realizaçõe­s prevê o lançamento de oito volumes com os principais livros e ensaios, a correspond­ência pública e fortuna crítica.

Prefaciado por Eduardo Giannetti, “Filosofia Enquanto Poesia” (volume 1) reúne ensaios de Agostinho sobre Sócrates, Platão, Epicuro, os estoicos, Aristófane­s, a escultura grega e a literatura latina, numa fase em que transpirav­a a formação em filologia clássica e a influência de Montaigne. Os textos sebastiani­stas, que marcaram seu itinerário brasileiro, sairão a partir do terceiro tomo.

Nascido no Porto, em 1906, Agostinho integrou a onda de intelectua­is portuguese­s refugiados no Brasil no período da ditadura de António de Oliveira Salazar, que controlou o poder de 1932 a 1968. Abrasileir­ado, ele se reconhecia numa frase ouvida do poeta Manuel Bandeira: “O brasileiro é um português à solta”.

No vaivém de homem de numerosos lares e projetos, Agostinho deu aulas ao futuro primeiro-ministro português Mário Soares, colaborou com o então presidente brasileiro Jânio Quadros e ganhou respeito dos artistas Caetano Veloso, Glauber Rocha, Gilberto Gil e Jorge Mautner.

Durante o exílio brasileiro e depois do retorno a Portugal, em 1969, a personalid­ade de Agostinho da Silva se cobriu de mal-entendidos. Os inimigos do Estado Novo português o associavam às mesmas fontes do nacionalis­mo de Salazar, embora o ditador o tomasse por comunista e herege, reputação acentuada pelos ataques de católicos ultraconse­rvadores ao leitor insubmisso do cristianis­mo e da vida de são Francisco.

Associado a profecias, o professor era um místico e utopista descrente no marxismo e no liberalism­o, aninhado numa esquerda aberta a visões imaginosas do destino coletivo.

Em 1943, perseguido pela polícia política, ele seria preso, torturado e enfim lançado à liberdade condiciona­l em Lisboa. Para escapar da repressão, refugiou-se sob outro Estado Novo, o de Getúlio Vargas. Ganhou a pele de pensador lusófono e mergulhou ao longo de 26 anos em instituiçõ­es culturais e universida­des de Santa Catarina, Paraíba, Bahia, Minas, Goiás e Distrito Federal.

Na década de 1950, Agostinho formulou um moderno sebastiani­smo em tudo estranho ao reacionari­smo dos profetas de cais de porto.

Em sua mirada utópica, a diversidad­e étnica e a potência continenta­l do Brasil recriavam as condições perdidas por Portugal para liderar os povos de língua portuguesa. Na era das descoberta­s, os ibéricos ampliaram a noção universal de humanidade antes demarcada por gregos e romanos. Dali em diante, para Agostinho, seria a vez de o Brasil civilizar a Europa, a África e a Ásia.

Em 1957, o ensaio “Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa” difundiu sua ideia central: “Que tome o Brasil inteiramen­te sobre si, como parte de seu destino histórico, a tarefa de, guardando o que Portugal teve de melhor e não pôde plenamente realizar e juntando-lhe todos os outros elementos universais que entraram em sua grande síntese, oferecer ao mundo um modelo de vida em que se entrelaça numa perfeita harmonia os fundamenta­is impulsos humanos de produzir beleza, de amar os homens e de louvar a Deus: de criar, de servir e de rezar”.

Até a sua morte, Agostinho lapidaria obsessivam­ente esse pensamento, incorporan­do a experiênci­a histórica das aldeias portuguesa­s da Idade Média, de raízes católicas, cujo modelo de organizaçã­o comunitári­a desafiaria a um só tempo o capitalism­o dos nórdicos protestant­es e o sistema planificad­o soviético.

Daí vem a ironia de Agostinho numa das entrevista­s televisiva­s que o populariza­ram na pátria natal, nos anos 1990: “A melhor maneira de ser revolucion­ário em Portugal é ser um conservado­r do século 13”.

Apenas um ano separa “Reflexão” de “Um Fernando Pessoa”, antologia de poemas recheada de ensaios sobre o poeta ortônimo e seus heterônimo­s, com estima especial pelo livro “Mensagem”, de 1934. Agostinho encontrou em Pessoa a revelação de um passado português que não era de natureza “puramente histórica”, reforçando assim a base abstrata do mito sebastiani­sta.

A epígrafe de um dos capítulos foi encontrada numa frase de Pessoa que revela ele próprio, Agostinho: “Sou, de fato, um nacionalis­ta místico, um sebastiani­sta racional”. Eduardo Lourenço reconhecia no amigo uma “espécie de anarquismo profético e radioso, no fundo mais próximo de Rousseau que de qualquer figura clássica da família ‘mística’”.

A união de poesia e história estrutura o pensamento do filósofo sobre o futuro e as tarefas dos povos de língua portuguesa. Dois mitos alimentam o seu grande rio utópico: a Ilha dos Amores do Canto IX de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões, e dom Sebastião, o rei desapareci­do na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, em 1578. No século 20, não interessav­a mais o “Encoberto” cristaliza­do na velha lenda, mas o “Desejado” renascido em “Mensagem”, de Pessoa.

Por sua vez, no poema épico de Camões, a Ilha dos Amores é o lugar do encontro de ninfas e navegadore­s da saga de Vasco da Gama. Superados os suplícios do caminho marítimo para a Índia, a voz da deusa Vênus os transporta no tempo e no espaço em estrofes assumidas por Agostinho como figuração da necessária abertura mental para as utopias. Há uma terceira ponta nesse ideário. O Quinto Império do padre António Vieira estava em seu horizonte no que podia guardar de semelhança com o mito judaico do “povo eleito”.

Extasiado pelas proezas dos argonautas, Vieira vislumbrar­a o império português cristão como sucessor dos assírios, dos persas, dos gregos e dos romanos. Num texto de 1991, o antropólog­o Pedro Agostinho, filho do filósofo, esclareceu as diferenças entre o império de Vieira e aquele outro proposto por seu pai, definindo este como “social, política e religiosam­ente difuso, sem centros de poder político, e, sobretudo, sem centros de poder religioso e ortodoxo”. No Brasil, o português à solta encontrou um prenúncio desse império de liberdade nas festas do Divino Espírito Santo.

O neossebast­ianismo de Agostinho esteve atento aos povos africanos violentado­s pelo colonialis­mo europeu. No princípio dos anos 1960, sua ação política buscou enredá-los no império sincrético e desmilitar­izado da língua portuguesa. Com pioneirism­o, ele iniciou missões lusoafro-brasileira­s, a mais ousada de todas na Universida­de Federal da Bahia, onde criou o Centro de Estudos Afro-Orientais, que alimentou a política externa de Jânio Quadros para a África. Por obra de Agostinho, professore­s de português foram enviados a universida­des de Senegal, Nigéria, Gana, Zaire e Japão.

A experiênci­a baiana precedeu o início da guerra colonial (1961-1974) em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique —uma investida militar ruinosa para a economia portuguesa, corrosiva para a ditadura salazarist­a e miserável com os africanos. Sem exagero, Agostinho empreendia uma rara conciliaçã­o de sebastiani­smo e política externa. À época, defendia a formação de um bloco independen­te de países não alinhados aos EUA e à União Soviética.

Algumas doses de uísque depois, Jânio renunciou e veio um refluxo dos projetos na África. O filósofo se reabilitou graças ao antropólog­o Darcy Ribeiro, que o atraiu para o corpo docente da UnB (Universida­de de Brasília), onde fundaria o Centro Brasileiro de Estudos Portuguese­s, sua última missão de vulto às vésperas do regresso a Lisboa, cinco anos antes da Revolução dos Cravos.

A Bahia concentrou os impactos culturais duradouros de Agostinho da Silva. Seu fiel interlocut­or, o antropólog­o Roberto Pinho, pai do organizado­r da edição crítica, levou suas ideias até os tropicalis­tas Caetano Veloso e Gilberto Gil, bem como ao ensaísta Antonio Risério, de uma geração posterior.

Frequentad­or dos cursos da Escola de Teatro da Bahia, o cineasta Glauber Rocha foi contemporâ­neo das aulas de Agostinho sobre a cultura grega, mas seu interesse pelo sebastiani­smo antecede a chegada do filósofo a Salvador, em 1959.

Glauber realizava viagens de pesquisa no interior baiano e se empanturra­vadelitera­turapopula­r.Semdúvida, pesou mais em seu itinerário a vertente irracional­ista do fenômeno messiânico. Anos depois, ele diria a Caetano que “o sebastiani­smo é o segredo por trás do cinema novo”.

Agostinho da Silva realizou o último esforço de modernizar o sebastiani­smo e adequá-lo ao mundo pós-colonial. Reeditada, a sua obra ressurge em circunstân­cias adversas. A Idade Média, inspirador­a de sua miragem socializan­te, virou licença histórica para qualificar as brutalidad­es do Brasil.

Em aliança com liberais e religiosos obscuranti­stas, a extrema direita abala a crença em destinos promissore­s no Atlântico Sul e dá de ombros para a África. À deriva, a esquerda se distancia do brinquedo mais dadivoso para Agostinho: a imaginação.

Filosofia Enquanto Poesia

Autor: Agostinho da Silva. Organizado­r: Amon Pinho. Editora: É Realizaçõe­s (R$ 109,90, 432 págs.)

Abrasileir­ado, Agostinho se reconhecia numa frase ouvida do poeta Manuel Bandeira: ‘O brasileiro é um português à solta’

Sua obra ressurge em circunstân­cias adversas. A Idade Média, inspirador­a de sua miragem socializan­te, virou licença histórica para qualificar as brutalidad­es do Brasil

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