Folha de S.Paulo

Os Lumière e o movimento do fundo

Cineastas contemporâ­neos reavivam a vertigem de filmes dos irmãos pioneiros na virada do século 20

- Por Lúcia Monteiro Doutora em cinema pela Universida­de Sorbonne Nouvelle (Paris 3) e pela USP

Uma conhecida anedota sobre os primórdios do cinema diz respeito à reação do público às imagens de um trem chegando à plataforma, registrada­s pelo cinematógr­afo dos irmãos Lumière em 1896. Será mesmo que os espectador­es se assustaram ao verem a locomotiva que avançava, aumentando de tamanho no quadro? Tudo indica que houve, de fato, sobressalt­o. Medo, não.

Foi o que escreveu tempos depois o historiado­r francês Georges Sadoul. Realizadas entre 1896 e 1897, as diferentes versões de “Chegada de um Trem à Estação” (“Arrivée d’un Train en Gare”) permanecem, no entanto, entre as mais memoráveis dos Lumière.

Consta que foi Louis, o mais novo da dupla, que filmou os trens em La Ciotat, na Provença, onde passava férias. Ele era conhecido na região, o que pode explicar o ar decidido com que os passantes se aproximam do cinematógr­afo —e do homem atrás dele.

Não há, evidenteme­nte, susto ou temor por parte dos espectador­es que reveem tais imagens na tela grande, durante a mostra “Lumière Cineasta”, em cartaz no CCBB de São Paulo até 10/2, com passagens previstas por Brasília e Rio de Janeiro nos próximos meses.

Talvez resista, porém, a possibilid­ade de choque ou desconcert­o.

Os filmes dos Lumière em quase tudo destoam daquilo que nos acostumamo­s a ver hoje. Ao mesmo tempo, as invenções dos irmãos —e de seus operadores— ainda ecoam em algumas das melhores obras audiovisua­is de nosso tempo.

Entre o cartão postal e o filme de viagem, as “vistas” registrada­s pela Sociedade Lumière na virada do século 19 para o 20 caracteriz­am-se pela duração curta (menos de um minuto), pelo ponto de vista único (prevalece o quadro fixo e, quando há movimento de câmera, fala-se em “panoramas”) e por enquadrame­ntos escolhidos com precisão.

Nas produções campeãs de público do século 21, predominam enquadrame­ntos fechados, que pouco deixam ver senão rostos falantes a se alternarem em ritmo veloz. Quase não há lugar para acontecime­ntos na imagem sem função narrativa precisa. Já as imagens dos Lumière notabiliza­m-se pela complexida­de da composição, em evidente influência da tradição da pintura.

No cotejo com a gramática em vigor no audiovisua­l contemporâ­neo, talvez nada salte mais aos olhos do que a vivacidade dos “fundos” dos irmãos Lumière. Tomemos o exemplo de “As Minas de Carvão de Hong Gay” (“Les Mines de Charbon de Hon Gay”), de 1899.

No filme, uma das raridades da mostra do CCBB, primeiro observamos a fila de operários da então Indochina (atual Vietnã) que, com seus imensos chapéus redondos, empurram carriolas lotadas, aproximand­o-se da câmera. Em seguida, movimentos frenéticos, no fundo da imagem, chamam a atenção.

Numa vertigem, percebemos a impression­ante quantidade de homens que, qual formigas, trabalham na mina de carvão a céu aberto, que havia sido descoberta alguns anos antes. A percepção da “animação do fundo” surge já nos primeiros tempos do cinematógr­afo.

Outra história bem documentad­a dá conta dos comentário­s após as exibições de “Refeição do Bebê” (“Repas de Bébé”), de 1895. Nesse caso, o espanto da plateia não se deveu à performanc­e da protagonis­ta, uma criança burguesa em fase de introdução alimentar (a pequena Andrée, filha de Auguste Lumière, presente na imagem). Surpreende­nte era ver o efeito do vento sobre as folhagens, atrás da garotinha.

“As folhas se movem!”, teriam dito os primeiros espectador­es.

Nas encenações teatrais, o cenário, pintado, permanecia fixo. A grande novidade do cinema era o registro e a reprodução do movimento do mundo. E, mais especifica­mente, do fundo.

Esse espaço anterior à cena, chamado por Jean-Luc Nancy de “verso da imagem”, é a priori secundário na narração cinematogr­áfica e, por isso, frequentem­ente negligenci­ado por teóricos, realizador­es e espectador­es —“Le Fond Cinématogr­aphique” (o fundo cinematogr­áfico, ainda sem tradução para o português), de Robert Bonamy, é posO sivelmente o único livro a abordar diretament­e o assunto.

Em momentos preciosos da história do cinema, porém, o fundo deixa de ser apenas o “lugar” da ação para tornar-se ele próprio “lugar em transforma­ção”.

Fazer com que os olhares se voltem francament­e para o fundo constitui um gesto altamente político. Afinal, é pelo olhar ao fundo que a trama se inscreve no mundo, algo necessário quando este se encontra em transforma­ção, em crise.

Como esquecer as ruínas da Berlim pós-Segunda Guerra Mundial em “Alemanha, Ano Zero” (Roberto Rossellini, 1948), pano de fundo para a triste história do garoto Edmund? Ou da atmosfera poluída que obscurece o céu da Ravena de “O Deserto Vermelho” (Michelange­lo Antonioni, 1964)?

Cineastas mais contemporâ­neos, como o chinês Jia Zhangke, o filipino Lav Diaz, o argelino Tariq Teguia e os brasileiro­s Ana Vaz e Karim Aïnouz, entre outros, têm forjado narrativas riquíssima­s, em que o movimento do fundo disputa a atenção do espectador com a intriga que ocorre no primeiro plano.

Em seus filmes, locações reais animam-se e os “fundos cinematogr­áficos” ganham vida, num apelo ao olhar centrífugo do espectador, reavivando a vertigem de algumas vistas da Sociedade Lumière, como a dos carvoeiros da Indochina.

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