Sei uns salmos porque tem no pano de prato

INT. BAR NO CENTRO DE SÃO PAULO - DIA

Maria e Pastor tomam café num copo americano. Estão sentados numa mesa, no canto do bar no centro de São Paulo.

Pastor come uma coxinha.

PASTOR Tá servida?

MARIA Não, obrigada.

Pastor abre com a boca o sachê de ketchup que está sobre a mesa. Põe sobre a coxinha e dá uma mordida.

MARIA (CONT’D) E tu vive só de ser pastor?

PASTOR É um ofício. Mas eu queria era ser poeta.

MARIA Valha, poeta faz o quê?

PASTOR A mesma coisa de Jesus.

MARIA Eu não entendo muito de Jesus, não.

PASTOR Qual é a sua religião?

MARIA Católica.

Pastor ri.

PASTOR Oxente, pois então.

MARIA Mas nunca li a Bíblia, sei uns salmos porque tem no pano de prato, mas só...

PASTOR Já é um começo.

Pastor pega o guardanapo e limpa a boca.

PASTOR Não quer pedir nada

mesmo?

MARIA Só o cafezim tá bom.

Maria dá um gole no café.

MARIA (CONT’D) Poeta é gente estudada né?

PASTOR Nada. Tem poeta de tudo que é tipo. Tem poeta que não sabe das letras, não escreve, não lê. É como se tivesse nascido com as palavras dentro dele. Nunca ouviu falar em Patativa do Assaré?

MARIA Nunca. De Assaré no Ceará? PASTOR É... Foi um grande poeta.

MARIA E dá pra viver de ser poeta?

PASTOR Num dá pra viver de serpastor?

Pastor e Maria riem.

PASTOR Quanto deu, chefe?

GARÇOM (V.O) Doze.

PASTOR Eita, conta cara. Quanto é o café?

GARÇOM (V.O) Dois reais cada café, oito a coxinha.

MARIA Oito conto uma coxinha? Nossa, agora eu queria ter provado o gosto de uma coxinha de oito reais!

PASTOR Deixa que essa Deus paga…

MARIA Esse negócio de Deus tá valendo a pena...

Pastor deixa o dinheiro na mesa e os dois saem.

[SOBRE O TEXTO] Este trecho integra o roteiro de ‘A Mãe’, longametragem dirigido por Cristiano Burlan que começou a ser rodado neste mês em São Paulo. O filme conta a busca da migrante nordestina Maria (Marcélia Cartaxo) por seu filho Valdo, supostamente assassinado por policiais militares durante uma ação na vila onde mora.