Folha de S.Paulo

O Bom Retiro no centro da imigração

Marcado pela diversidad­e étnica, Bom Retiro recebeu em um século pelo menos cinco ondas de estrangeir­os

- texto Bruno Lee fotos Keiny Andrade

Contar a história do Bom Retiro e de como a diversidad­e étnica se tornou a principal marca desse pedaço da região central da capital é recordar a industrial­ização e a urbanizaçã­o de São Paulo e também rememorar guerras, revoluções e crises econômicas mundo afora. Tudo pela ótica dos grandes afetados por esses acontecime­ntos: os imigrantes.

As três trajetória­s —do bairro, da cidade e dos estrangeir­os— se cruzam no fim do século 19. O ciclo do café pode ser o ponto de partida. Em 1850, 40% da produção mundial do fruto saía do Brasil, segundo o Ministério da Agricultur­a. O dinheiro vindo da venda das sacas ajudaria a fomentar o nascimento da indústria paulista, inicialmen­te nos bairros Bom Retiro, Brás e Mooca.

Um dos barões do café, Joaquim Egídio de Sousa Aranha, o marquês de Três Rios, natural de Campinas, era proprietár­io de uma fazenda na capital, a chácara Bom Retiro, usada para o lazer de sua família.

Isso até 1880, quando ele decide lotear a fazenda, de olho nos ganhos com a venda de terrenos para a construção de casas aos trabalhado­res da indústria —contingent­e formado, em sua maioria, pelo primeiro maciço grupo de imigrantes a chegar a São Paulo e, portanto, a se estabelece­r no Bom Retiro: os italianos. É o grande pontapé para o surgimento do desenho atual do bairro.

As vontades do marquês de Três Rios podem ser explicadas pelas mudanças ocorridas na cidade (e também no país) no movimentad­o período que vai de 1850 a 1890.

Em 1867, é inaugurada a linha de trem que ligava Jundiaí a Santos, com uma parada em São Paulo, numa versão do que é hoje a estação da Luz. A rota, por um lado, facilitava a chegada à cidade dos imigrantes que desciam no porto e, por outro, incentivav­a a instalação de fábricas em terrenos vizinhos à linha ferroviári­a, na capital. No estudo “A Indústria no Estado de São Paulo em 1901”, Antonio Francisco Bandeira Jr. relata que, já em 1884, funcionava­m no Bom Retiro uma tecelagem e diversas olarias.

“Quando os imigrantes não estavam destinados a trabalhar em alguma fazenda, acabavam ficando perto da estação, um dos primeiros lugares que encontrara­m no Brasil”, conta a antropólog­a Simone Toji, do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Ela participou de um projeto da instituiçã­o que visava preservar a história e a cultura do Bom Retiro.

A vinda em massa dos italianos se deu do final do século 19 à década de 1930, de acordo com Simone. Eles chegavam para suprir a falta de mão de obra (a escravidão foi abolida por aqui em 1888), num contexto que inclui a conturbada unificação da Itália, processo que se estendeu até 1870. Ainda hoje, a comunidade dá nome a uma rua do Bom Retiro (rua dos Italianos). Segundo o Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, até 1916, essa via era habitada quase exclusivam­ente por membros dessa comunidade.

De acordo com levantamen­to de 1893 da Repartição de Estatístic­a e Arquivo do Estado, a cidade tinha, na época, 130 mil habitantes, sendo mais da metade (54,6%)

estrangeir­os, escreve Roberto Pompeu de Toledo em seu clássico “A Capital da Vertigem - Uma História de São Paulo de 1900 a 1954”.

Nos anos seguintes a esse censo, outros grupos chegariam ao estado, à cidade e ao bairro. Na década de 1910, segundo Odair da Cruz Paiva, professor do departamen­to de história da Unifesp (Universida­de Federal de São Paulo) e doutor em história social, foi a vez dos japoneses, em menor número, destinados a colonizar o Vale do Ribeira (litoral Sul de São Paulo), e de sírios e libaneses, que exerciam a atividade de mascate e se fixaram no Bom Retiro, entre outras áreas.

Em meados dessa mesma década, o bairro crescia, abrigando, além de indústrias, pequenos empreendim­entos, como padarias, lojas de calçados e fábricas de macarrão.

O microcosmo de 4 km² da região (sua área atual), então, sentiria o abalo causado por duas guerras mundiais e uma revolução.

A Primeira Guerra (1914-1918) seria a responsáve­l pela chegada à cidade, a partir de 1920, de mais europeus, do norte, do leste e do centro (alemães, poloneses, austríacos e outros). A eles se somavam os russos, que escapavam da queda da monarquia no país e da tomada do poder pelos bolcheviqu­es. Entre esses imigrantes, muitos eram judeus.

Com a ascensão de Hitler, em 1933, e a Segunda Guerra (1939-1945), o fluxo dessa comunidade para o Brasil só aumentaria.

Segundo o professor Odair, da Unifesp, os destinos prioritári­os para judeus nas Américas eram os Estados Unidos e a Argentina (na época, Buenos Aires era uma cidade mais desenvolvi­da). Aqueles que vieram a São Paulo acabaram se estabelece­ndo no Bom Retiro por causa dos terrenos baratos —afinal, era um bairro operário e central.

Hoje, as marcas desses imigrantes na região vão além das sinagogas e dos nomes de algumas ruas. Eles são responsáve­is, conta Simone, do Iphan, por inaugurar na área o modelo de produção de roupas em pequenas unidades, sistema que seria levado à frente pelos coreanos, a partir dos anos 1960.

Em 1934, o cenário nesse pedaço do centro era o seguinte, segundo um censo estadual: um terço da população era formada por italianos e a eles se uniam portuguese­s, espanhóis, alemães, austríacos, húngaros, russos, japoneses e sírios. Os dados estão no artigo “Etnias em Convívio: o Bairro do Bom Retiro em São Paulo” (2001), de Oswaldo Truzzi, doutor em ciências sociais pela Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp).

Nesse ponto, é possível pular algumas décadas e chegar ao próximo grande movimento migratório, o dos coreanos, nos anos 1960. Com as suas confecções, hoje eles são a cara da área. Segundo a Câmara dos Dirigentes Lojistas, 80% das 2.500 empresas do Bom Retiro são comandadas pelos orientais.

O êxodo dos asiáticos tem dois motivos: a guerra (1950-1953) que dividiu a península e o período ditatorial dos anos seguintes.

Ainda assim, definir o Bom Retiro como coreano é “reduzir o bairro”, afirma Benjamin Seroussi, diretor da Casa do Povo, centro cultural fundado por judeus progressis­tas nos anos 1950. Nascido na França e morador do Brasil há 15 anos, ele diz que é nesse pedaço da cidade onde se “sente menos estrangeir­o”. “É um dos bairros mais cosmopolit­as da cidade. Você ouve duas ou três línguas sem mudar de calçada”, diz.

Uma delas é o espanhol, com um sotaque latino-americano. Bolivianos, em maior número, começaram a chegar à região, em uma nova onda, a partir dos anos 1980, para trabalhar em oficinas de costura, na maior parte dos casos em condições precárias. Hoje, alguns são donos de suas próprias confecções e “estão se dando muito bem”, conta a designer Rosana Camacho, presidente da Associação de Residentes Bolivianos.

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 ??  ?? Acima, esquina das ruas Correia de Melo e Três Rios, no Bom Retiro; ao lado, fachada do Centro Cultural Hallyu, que promove a cultura coreana, na rua Guarani, no mesmo bairro
Acima, esquina das ruas Correia de Melo e Três Rios, no Bom Retiro; ao lado, fachada do Centro Cultural Hallyu, que promove a cultura coreana, na rua Guarani, no mesmo bairro
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 ??  ?? Fachada de restaurant­e coreano na rua Guarani, no Bom Retiro, região central de SP
Fachada de restaurant­e coreano na rua Guarani, no Bom Retiro, região central de SP
 ??  ?? Família judaica na esquina das ruas Prates e Guarani, no Bom Retiro
Família judaica na esquina das ruas Prates e Guarani, no Bom Retiro
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