Folha de S.Paulo

História de um casamento

O Reino Unido enfim deixa a União Europeia nesta sexta, após três complicado­s anos; e se esse divórcio labiríntic­o fosse contado como a separação de um casal?

- Ivan Finotti e Daigo Oliva

Difícil entender o brexit? E se fosse o divórcio de um casal? A vida conjunta de quase 5 décadas entre Reino Unido e União Europeia, que se encerra hoje, foi cheia de vaivéns.

Após três longos anos, o Reino Unido enfim deixará a União Europeia nesta sexta-feira, 31 de janeiro (à 0h em Bruxelas, às 23h em Londres e às 20h em Brasília). O fim de uma relação que durou quase cinco décadas foi cheio de vaivéns, discussões e a sensação de que o processo de separação nunca chegaria ao fim. Soou familiar? Muitos casamentos terminam assim.

O labirinto de um divórcio muitas vezes faz com que os envolvidos já nem saibam ao certo o que estão discutindo. Como chegamos até aqui? O que estamos negociando? Quem pagará o quê? Por quê?

Para entender as minúcias que levaram ao famigerado —ou celebrado— brexit, a Folha reconta a saída do bloco como se fosse o fim do casamento de duas pessoas: o britânico Paul e a francesa de raízes alemãs, jeito italiano e charme belga Marie Müller.

A paquera começou em 1957 1 , ao som de rock’n’roll. No mesmo ano em que Elvis conquistou o mundo com “Jailhouse Rock”, o galante Paul tirou para dançar a garbosa Marie Müller.

Parecia-lhe irresistív­el aquela combinação da sensualida­de francesa com a força alemã, a pimenta italiana com a finesse de Luxemburgo, o charme belga com a seriedade dos Países Baixos.

Mas Marie ainda era uma criança, e seu pai, o general Charles de Gaulle 2 , não queria de jeito nenhum permitir essa pouca-vergonha com a filha.

Afinal, o velho francês, fruto de uma outra época, não concordava com aquela relação de Paul com um tal de Washington, que ele achava meio homoerótic­a, por assim dizer.

De Gaulle desconfiav­a que Paul pudesse, quem sabe, pular a cerca com Washington 3, contando a ele os segredos da família europeia. Além disso, a fortuna do pretendent­e da filha, contada em libras esterlinas, eco persistent­e de um período imperial, incomodava-o.

Por isso, negou dois pedidos 4 denamoroaM­arie.Aindaque

Paul estivesse a fim, ele temia que um casamento acabasse com as delícias de sua vida de solteiro. O pragmatism­o protestant­e tornava o matrimônio atraente mais pela união de dotes, ou seja, quase que só pelopontod­evistaecon­ômico.

Mas no sentido da integração mais fiel, aquela do dia a dia, aí já era demais. Paul não queria abrir mão de sua liberdade para fazer o que quisesse.

Mesmo desconfiad­o dos sogros, um francês e uma alemã 5 , Paul insistiu. Foi preciso que De Gaulle deixasse de controlar sua filha para que os pombinhos finalmente rolassem debaixo dos lençóis.

Paul enfim casou com Marie. Era 1973 6 , ela tinha 16 anos —outrostemp­os,vejambem— e,éclaro,adoravaDav­idBowie.

Foram felizes para sempre por mais de duas décadas. Numa relação bem moderna para a época, outros parceiros foram se juntando ao casamento 7 (um grego sisudo, um sueco bem vestido, sem contar um punhado de garotas do Leste Europeu etc.), mas Paul nunca se entregou totalmente à esposa.

Em 1999, por exemplo, abalo no quarto de casal: ele insistiu em manter sua conta separada, em vez da conta conjunta que muitos casais dividem.

Assim, acabaram-se os francos,osmarcos,asliras,masnão as libras. Marie, que em determinad­o momento mudou de nome para Mariette 8 , agora pagavaseus­boletoseme­uros 9.

Em 2012, quando o parceiro de poliamor grego não andava bem das pernas, foi inventado o apelido fofo Grexit 10 , uma forma de dizer que essa relação poderia ser uma roubada.

Paul, que nunca mergulhou para valer na relação, gostou e copiou: queria ser chamado de Brexit, afinal era britânico.

Quem não se lembra de

Brangelina, outro apelido famoso que também começa com “br”? Era o casal formado pelos astros Brad Pitt e Angelina Jolie. No caso do Brexit, porém, o apelido pegou foi na hora do divórcio.

Nenhuma separação, no entanto, começa apenas quando a crise degringola. Muitos anos antes, em 1993, o Ukip 11 , rapaz com nome de banda punk, também britânico, passou a destilar veneno na razoavelme­nte tranquila relação de Paul com Marie, digo, Mariette.

Todo mundo tem um velho amigo que não vai com a cara da pessoa com quem você é casado. Pois o Ukip viu que seus conselhos tinham espaço na conturbada cabeça de Paul e intensific­ou seu discurso.

No bar em que britânicos e parceiros europeus se reuniam para discutir a relação, o rapaz se sentia cada vez mais à vontade 12 para zombar do casamento. “Só você perde com isso, bicho, sai dessa.”

As dúvidas lançadas eram sobre a liberdade que Paul tinha quando era solteiro, seja na independên­cia econômica (“Tudo você tem de pedir permissão para ela”, dizia Ukip

13 ), seja no direito de dizer chega ao vaivém 14 de gente

na relação. Vocês já devem ter percebido, mas o Ukip era conservado­r nos costumes.

Outros fatores que empurraram­o movimento para o fim do casamento foram uma campanha debo a tose a nostalgia dos tempos de solteiro, em que Paul mandava prender e soltar sem dar satisfaçõe­s a ninguém.

Nesse clima de acusações e brigas domésticas, um dos padrastos de Paul, um homem chamado David 15 , teve uma ideia um tanto polêmica. Preocupado com o filho postiço, propôs abrir uma enquete 16 para que decidissem se essa relação deveria acabar ou não.

Ele, que nutria certa simpatia pela nora, achava que, mesmo conturbado, o relacionam­ento era mais benéfico do que tóxico, para usar um vocábulo atual. Achava também que a maioria dos amigos de Paul pensava da mesma maneira, eque a consulta resolveria as dúvidas do enteado.

O resultado, no entanto, não foi só o contrário 17 do que ele havia imaginado. A ideia “genial” mergulhou Paul numa depressão e em brigas que muitas vezes fazem um casal pensar que a melhor solução é deixar tudo como está. David, percebendo o estrago, abandonou 18 o filho postiço.

Ah, os homens… Coube a uma mulher, uma amiga de David, Theresa 19 , tomar conta de Paul —e da papelada jurídica 20 da separação. Sua ide iaera, claro, conseguira maior quantidade de benefícios no acordo de divórcio para o rapaz, incluindo uma pensão 21 não tão grande assim.

Casamentos longos não terminam num passe de mágica. São raros os casos em que uma pessoa deixa acasa em que vive e cor taos laços abruptamen­te. Há contas apagar, arranjos antigos e, às vezes, filhos.

Com Paule Ma ri ettef oi a mesma coisa. Foi apenas dois anos depois que Theresa apresentou um primeiro roteiro para o fim do casamento.

Entretanto, como no “Soneto da Separação”, de Vinicius de Moraes, de repente da calma fez-se o vento. A proposta 22 , que previa manter Paul desfrutand­o de benefícios econômicos de estar casado e proibia que seus filhos europeus o visitassem sem aviso prévio, foi atacada por todos os lados.

Os outros maridos de Mariette, por exemplo, acusaram Paul de querer ficar apenas com as partes boas do espólio, escolhendo, na lista de vantagens e obrigações a que todo membro desse casamento grupal tem de se submeter, apenas aquelas que lhe convinham.

Theresa, por sua vez, apanhou até de sua equipe de advogados 23 . Para eles, ela preferia uma abordagem muito conciliató­ria, amigável, em vez de um litígio. Queixavams­e de um desenho que, supostamen­te, ainda deixaria Paul muito ligado a Mariette 24 .

Assim, Theresa voltou à carga com uma minuta 2.0 do acordo de separação. De novo, vieram mu xoxos de seus conterrâne­os, insatisfei­tos coma proposta acordada com os advogados de Mariette para resolver um dilema: o que fazer com os irmãos de Paul 25 .

Brigados há muito tempo 26 , eles se dividiram. Na casa do Norte, quase todo mundoélig adoa Paul. Nacas a ao sul, a relação com Ma ri et te prevaleceu.

Como abriga fraternal havia sido pesada e dera até em morte, foi preciso evitar que as rusgas se reacendess­em. Para não retomar os tempos em que era preciso pedir permissão para visitar as terras do irmão e fazer negócios com os vizinhos era um inferno, a discussão de como manter uma paz local era um problema 27 .

Mas o rompimento sugerido por T heres anão prosperou. Ela tentou uma, duas, três vezes obter a assinatura que faltava ao divórcio, mas Paul ainda não estava satisfeito com o plano.

As datas estabeleci­das para o fim do casamento foram postergada­s três vezes 28 ,eo caso era tratado nas revistas de fofoca como uma piada —nos jornais sérios também.

E ramai o,eT heres a, desiludida e sem opções, foi-se embora. Um mês emeio depois, seus ares de frieza foram substituíd­os pela fanfarroni­ce de um conhecido na paróquia, um homem de cabelos desgrenhad­os chamado Boris 29 .

Boris gostava de repetição. “Agente vais e separar da Ma ri et te ”,“agente vais e separar da Mariette, custe o que custar”. Olhem que coincidênc­ia: Boris era amigo do Ukip!

Para não contrariar o irmão de Paul no Norte, que sentia que o acordo de divórcio o deixaria ainda muito ligado à cunhada Mariette, o novo advogado sugeriu que toda comunicaçã­o pós-ruptura entre os ex-amantes acontecess­e em campo neutro 30 , longe do barril de pólvora da fronteira.

Boris precisavas e cacifar para impor ao divórcio alinha litigiosa que vinha defendendo.

Apostou na reformulaç­ão da equipe de advogados 31 , e conseguiu fazer com que Paul aceitasse os nomes que indicou.

Assim, enterrando as ilusões de quem torcia por uma recaída do casal Paul-Mariette, o acordo de separação enfim foi aprovado 32 , tanto pelos advogados de cá quanto de lá.

Agora só falta acena final, com festa e tudo, para subirem os créditos desse psicodrama conjugal tão inverossím­il quanto melancólic­o. Colaborara­m Lucas Neves e Bruno Benevides

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Ilustraçõe­s Caco Galhardo
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