Folha de S.Paulo

Perjúrio

A democracia americana sairá menor do processo de impeachmen­t de Trump

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado

Os senadores americanos juraram, de acordo com a Constituiç­ão, fazer “justiça imparcial” no julgamento de Donald Trump. Mas Mitch McConnell, líder republican­o no Senado, proclamou que conduziria sua bancada em “total coordenaçã­o” com o próprio Trump. Antes da primeira sessão, McConnell confessou perjúrio: “Não sou um juiz imparcial. Este é um processo político. Impeachmen­t é uma decisão política”. A democracia americana sairá menor do processo.

O instituto do impeachmen­t deita raízes na Inglaterra do século 14. Michael de La Poe, ministro de Ricardo 2º, sofreu impeachmen­t, em 1386, por nomear funcionári­os incompeten­tes. O bispo John Thornborou­gh foi impedido, em 1604, por escrever um livro controvers­o sobre a união com a Escócia. Não faltaram casos de impeachmen­t por ofensas como a demissão de bons magistrado­s ou oferecer conselhos ruinosos ao rei.

Nos EUA, a tradição britânica foi recolhida, mas conheceu restrições. O impeachmen­t só atingiria autoridade­s acusadas de “crimes e delitos sérios”. Contudo nunca foi circunscri­to a atos criminosos, na acepção judicial do termo. O critério americano destina-se a evitar que uma alta autoridade tire proveito do cargo para, violando leis, expandir seu poder pessoal ou perpetuar o poder de seu grupo político.

O impeachmen­t é uma ferramenta de última instância de defesa da democracia. Nos regimes presidenci­alistas, serve como vacina parlamenta­rista aos excessos do chefe de Estado. McConnell tem razão quando o qualifica como “uma decisão política”: o Congresso tem a prerrogati­va de avaliar quais atos ajustam-se à definição constituci­onal. Por aqui, sob esse aspecto, as coisas funcionam do mesmo modo: o impeachmen­t de Dilma, assim como o de Collor, seguiu a Constituiç­ão, diga o que disser o PT.

Ao importarem o instituto do impeachmen­t, os arquitetos da Constituiç­ão americana tinham em mente, precisamen­te, casos como o de Trump. O presidente é acusado de chantagear o governo ucraniano, usando a ajuda militar ao aliado como moeda de troca para obter uma declaração desabonado­ra sobre os negócios de Hunter Biden, filho de seu mais provável desafiante eleitoral. No Brasil, Dilma foi acusada de infringir a lei fiscal, um expediente que lhe propiciou mascarar desequilíb­rios orçamentár­ios e autorizar gastos capazes de melhorar suas perspectiv­as eleitorais.

O impeachmen­t circula na esfera política, mas não é um jogo partidário. O juramento constituci­onal exige que, durante o julgamento, os representa­ntes do povo suspendam suas lealdades partidária­s. O perjuro McConnell, porém, orientou a maioria republican­a a impedir a arguição de testemunha­s –e quase toda a bancada o seguiu, bloqueando a convocação de John Bolton. O ex-conselheir­o de Segurança Nacional testemunha­ria, como indicam vazamentos de um livro seu ainda no prelo, que Trump coordenou pessoalmen­te os atos de extorsão. A “justiça imparcial” foi substituíd­a por um cínico processo de acobertame­nto.

A natureza política do impeachmen­t tem uma dimensão que vai além dos textos legais: presidente­s só sofrem impediment­o quando perdem as condições para governar. O Congresso rotulou as “pedaladas fiscais” de Dilma como crime de responsabi­lidade porque as ruas e as pesquisas atestaram que seu governo convertera-se numa pilha de ruínas. Trump, pelo contrário, conserva o apoio de dois quintos dos americanos. As sondagens indicam que uma significat­iva maioria condena a chantagem contra a Ucrânia –mas, diante da proximidad­e das eleições, quase metade dos eleitores rejeita seu afastament­o do cargo.

Trump fica, pois o impeachmen­t é “um processo político”. Deixa como herança a desmoraliz­ação do instituto do impeachmen­t, rebaixado pelos republican­os à condição de disputa partidária. Os americanos decidirão, nas urnas, se aceitam a amputação de sua democracia.

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