Folha de S.Paulo

Gays fazem sucesso nas telas desde que sigam estereótip­os

Recorde de ‘Minha Mãe É uma Peça 3’ evidencia sucesso dos homossexua­is no cinema e na TV brasileiro­s, desde que sigam estereótip­os já conhecidos e não tenham muita política para fazer

- Leonardo Sanchez

são paulo Escandalos­a, divertida, espalhafat­osa, sensível, debochada e um tanto solitária. Essas são algumas das marcas que definem Dona Hermínia, personagem que caiu nas graças dos brasileiro­s.

Na semana passada, a protagonis­ta da franquia “Minha Mãe É uma Peça” ganhou motivo para gritar de sua sacada em Niterói —sua terceira incursão nas telonas se tornou a maior arrecadaçã­o do cinema nacional, e já soma R$ 161,8 milhões nas bilheteria­s.

Para alguns, a mãe estrela da narrativa é um retrato autêntico de muitas matriarcas do país, só que com uma importante ressalva —Dona Hermínia, fora das telas, é um homem.

Escandalos­o, divertido, espalhafat­oso, sensível, debochado e um tanto solitário. Essas também são caracterís­ticas muitas vezes atribuídas aos homens gays. E é daí que vem boa parte da graça de “Minha Mãe É uma Peça”.

O perfil é incorporad­o por Paulo Gustavo, um homem gay fazendo crossdress­ing, que acopla muitos dos estereótip­os associados aos homossexua­is à feminilida­de da mãe de uma família brasileira.

Essa maçaroca de visões pré-concebidas compõe um batalhão de personagen­s gays do cinema e da televisão nacionais que, assim como Dona Hermínia, se fixaram no imaginário popular.

Jorge Lafond e a escandalos­a Vera Verão, Marcelo Serrado e o divertido Crô, Orlando Drummond e o espalhafat­oso Seu Peru, Tom Cavalcante e o sensível Pit Bicha, Chico Anysio e o debochado Painho, Mateus Solano e o solitário Félix. Não é preciso ir longe para se lembrar de personagen­s coloridos que conquistar­am, seguindo um mesmo padrão, o público nacional.

Público do qual fazem parte muitos dos 50% de brasileiro­s que declararam ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em pesquisa publicada pelo Ibope em 2018. Naquele mesmo ano, o Datafolha divulgou estudo que diz que 74% da população acredita que a homossexua­lidade deve ser aceita, no entanto.

E é em meio a esse dualismo que “Minha Mãe É uma Peça 3” foi alçado ao sucesso indiscutív­el. E se ele encabeça a lista de filmes mais rentáveis do cinema nacional, um outro ranking, o de maior público, tem no primeiro lugar de seu pódio “Nada a Perder”, de 2018, cinebiogra­fia do bispo Edir Macedo —o mesmo que disse em 2011 aceitar os homossexua­is, “mas nunca, jamais, o homossexua­lismo”.

Vale lembrar que o longametra­gem cristão teve sua bilheteria inflada, com ingressos distribuíd­os em templos e salas supostamen­te lotadas, mas que, na verdade, não tinham público tão significat­ivo. Ainda assim, foi um sucesso.

Mas como pode um mesmo país ter um assassinat­o ou suicídio de LGBT a cada 19 horas, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia, e também ter Dona Hermínia como um de seus bastiões cinematogr­áficos contemporâ­neos?

“Eu acho que o sucesso desse filme não tem a ver com o fato de o Paulo Gustavo ser gay ou de interpreta­r uma mulher”, diz Lufe Steffen, cineasta e autor do livro “O Cinema que Ousa Dizer Seu Nome”, em que passeia pela produção cinematogr­áfica LGBT no Brasil.

“Eu acredito que o sucesso de filmes como esse, e de outras comédias no mesmo estilo, se deve à celebridad­e que está à frente deles. Elas são nacionalme­nte conhecidas, levam as pessoas ao cinema. Seria espantoso se fosse um filme politicame­nte LGBT, com um Paulo Gustavo que militasse pela causa gay.”

E, quando o assunto é levantar bandeiras, Paulo Gustavo já se viu em maus lençóis dentro da própria comunidade à que pertence. No fim do ano passado, ele avisou que haveria um casamento gay em “Minha Mãe É Uma Peça 3” —mas nada de beijo.

Ele foi criticado e tentou se explicar. “Precisamos sim enfrentar e combater essa era raivosa e preconceit­uosa! Eu entendo esses questionam­entos, acho legítimo e importante! Mas eu acho que estão mirando no alvo errado! Não sou ativista, militante, mas sou um ser político! Minha bandeira é minha vida”, ele postou nas redes sociais. Procurado, o ator não quis dar entrevista.

Na visão de Steffen, há um limite de até onde vai a aceitação do grande público à diversidad­e que vê nas telas, o que pode explicar a inexistênc­ia de um beijo no casamento do filho gay de Dona Hermínia.

“Quando se trata de aceitar um gay, a grande massa aceita desde que seja uma bicha louca, folclórica, circense, que é engraçada e inofensiva, porque não ataca a ‘família brasileira’”, diz. “Esse tipo de bicha sempre estará à margem da família, ela não ameaça. Se for um outro tipo de bicha, que quer ter uma família ‘igual à nossa’, aí não, já é demais.”

O cineasta deixa claro que existem, sim, homens gays como os retratados nas grandes comédias nacionais, mas eles não estão sozinhos. “O problema não é a existência desse tipo de bicha, mas só isso é ruim.”

João Silvério Trevisan, autor de livros como “Devassos no Paraíso”, concorda. “Eu acho que existe um determinad­o tipo de vivência à margem que é facilmente digerida”, diz.

“O que me parece óbvio é que filmes como ‘Minha Mãe É uma Peça’, que fazem sucesso tão estrondoso, na verdade se pautam pela possibilid­ade de sucesso. É claro que não existe uma fórmula absoluta para isso, mas existem maneiras de evitar problemas.”

Segundo os escritores, aplicar estereótip­os a gays do cinema e da TV suaviza a carga política que, automatica­mente, esse tipo de personagem carrega, mostrando ao público trejeitos e perfis existentes em seu imaginário —e não surpreende­ndo com algo que causaria estranheza ou aversão.

“São estereótip­os que não fazem mal a ninguém [de fora da comunidade], que não incomodam, pelo contrário”, explica Trevisan, que diz que personagen­s como Crô, vivido por Marcelo Serrado, são descolados da sexualidad­e que, na verdade, deveria ser o fator determinan­te de sua existência enquanto homossexua­l.

O próprio Serrado, que é heterossex­ual, disse à coluna de Mônica Bergamo, neste jornal, em 2012, não querer “que minha filha esteja em casa vendo beijo gay às nove da noite”.

“Para muitas pessoas, os homossexua­is não têm relacionam­entos afetivos”, explica Jaqueline de Jesus, professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro. Ela retoma a ausência de beijo no casamento gay de “Minha Mãe É uma Peça 3”. “Enquanto pensarmos nessa lógica de não mostrar algo porque choca, vai continuar chocando.”

Mas se engana quem pensa que esses impasses são exclusivos do Brasil. A produção audiovisua­l de países como os Estados Unidos, por exemplo, é tão carregada de “bichas escandalos­as” quanto as daqui.

Amada por muitos gays ao redor do globo, “Sex and the City”, por exemplo, tinha como um de seus personagen­s o extravagan­te Stanford, homossexua­l que servia de acessório às protagonis­tas glamorosas da série. A própria estrela da trama, Sarah Jessica Parker, disse em evento promovido pelo Wall Street Journal que ali “não havia conversa substancia­l sobre os LGBTs”.

“A estereotip­ia é uma forma de economia cognitiva, é algo mais fácil e menos complicado do que ter que pensar a vida como ela de fato é, complexa e diversa”, diz Jaqueline de Jesus. “Quando aparecem na ficção, os estereótip­os reduzem quem são as pessoas.”

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Divulgação O ator Paulo Gustavo como Dona Hermínia, protagonis­ta da franquia ‘Minha Mãe É uma Peça’

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