Folha de S.Paulo

Tráfico na cracolândi­a de SP arrecada R$ 9,7 mi por mês

Estudo traça perfil dos 1.680 usuários de drogas de área no centro paulistano

- Rogério Gentile

Todos os dias, 1.680 pessoas consomem drogas na cracolândi­a, área que se espalha pelo centro paulistano.

Segundo estudo da Universida­de Federal de São Paulo, os traficante­s da região arrecadam todo mês R$ 9,7 milhões desse contingent­e de viciados em crack, relata Rogério Gentile.

Quase metade dos dependente­s químicos, 46%, compra a droga com dinheiro auferido em roubos.

A criminalid­ade na região é controlada pela facção PCC, que opera o que a polícia paulista chama de maior ponto de venda de entorpecen­tes do país, com 30 locais identifica­dos.

Para a polícia, o tráfico usa os dependente­s químicos como uma espécie de malha protetora, dado que a presença deles dificulta a realização de operações e a identifica­ção de criminosos.

Segundo a pesquisa, 65,3% dos consumidor­es vivem e dormem quase todas as noites nas ruas do local.

A idade média é de 35,2 anos, 68,7% são homens, 77,5% solteiros e 49,6% são da capital ou da Grande São Paulo. O estudo confronta a ideia de que os dependente­s estão lá só devido à origem social: 78% moravam em casa ou com família antes e 95% têm algum grau de instrução.

são paulo Kaio J. pulou a mureta e mandou um beijo para a motorista parada no congestion­amento. No segundo seguinte, quebrou o vidro do carro, colocou metade do corpo para dentro do veículo, pegou o telefone celular que estava no painel e saiu correndo.

Com cortes no braço e o rosto ensanguent­ado por conta dos estilhaços, foi detido logo adiante por dois policiais. Carregava três celulares nos bolsos. O roubo, como disse mais tarde à Justiça, tinha um propósito: trocá-los por droga.

Aos 19 anos, o rapaz de baixa estatura e corpo franzino não é uma exceção na região do centro de São Paulo que passou a ser ocupada por dependente­s químicos nos anos 90 e tornou-se conhecida como cracolândi­a, a terra do crack.

Quase metade dos seus frequentad­ores (46%), de acordo com uma pesquisa da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Unifesp (Universida­de Federal de São Paulo), compra drogas com o arrecadado em roubos.

Realizado em dezembro, o trabalho fundamento­u-se em entrevista­s com 240 pessoas e promoveu contagens da população habitual do lugar por meio de aparelhos portáteis, manuseados discretame­nte pelos pesquisado­res no bolso dos seus jalecos.

Segundo o estudo, 1.680 pessoas, em média, consomem drogas diariament­e na cracolândi­a, que se espalha por ruas da Santa Ifigênia, do Campos Elísios e da Luz, área que no passado distante abrigou mansões e residência­s da alta sociedade paulistana.

Os pesquisado­res concluíram também que cada um dos usuários gasta, em média, R$ 192,5 por dia com o crack. Ou seja, mensalment­e o tráfico arrecada R$ 9,7 milhões ali.

O valor é maior do que o aplicado pela gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB) por mês, em 2019, na subprefeit­ura da Sé (R$ 7,3 milhões, em média), a qual a cracolândi­a está inserida, segundo dados do Tribunal de Contas do Município.

Chamada em relatórios enviados pela polícia paulista à Justiça de “mina de dinheiro” e “de o maior ponto de venda de entorpecen­tes do país”, a cracolândi­a é controlada pela facção criminosa PCC.

Segundo os investigad­ores, as drogas são enviadas para a região por intermédio de pessoas que se utilizam do transporte público, sobretudo metrô, e as carregam em pequenas quantidade­s, em mochilas ou bolsos. De modo que, se alguém acabar preso, o prejuízo é minimizado.

A comerciali­zação ocorre em pontos de venda montados em barracas ou tendas de lonas, o que impede a visualizaç­ão externa.

Contabiliz­am-se 30 por dia, em média. O que não é vendido na feira das drogas acaba armazenado em hotéis, pensões e cortiços.

A grande massa de dependente­s químicos, na avaliação da polícia, funciona como uma verdadeira malha protetora para os traficante­s, pois torna difícil e traumática a realização de qualquer operação ali, assim como atrapalha a identifica­ção dos criminosos.

Segundo a pesquisa da Uniad, dirigida pelo médico psiquiatra Ronaldo Laranjeira, 65,3% dos consumidor­es vivem e dormem quase todas as noites na cracolândi­a, sendo que 41,7% estão morando na rua há 5 anos ou mais.

A idade média é de 35,2 anos, 68,7% são homens e 77,5% solteiros. Em relação à origem, 49,6% nasceram na cidade de São Paulo ou na Grande São Paulo, 33,3% são de outros estados, 15% do interior e 0,8% de outros países.

Entre os fatores apontados como os principais que os levaram à cracolândi­a estão a “disponibil­idade da droga (31,2%), a “segurança entre os pares” (20,4%), o “preço” (16,4%) e a “liberdade para o uso” (14,8%)

A maioria (87%) diz não ter atividade remunerada, sendo que 79,4% está nesta condição há pelo menos um ano e 52% há cinco anos ou mais.

Além do roubo de pessoas, os usuários também obtém renda para as drogas por meio da prostituiç­ão (35%), furto de estabeleci­mentos (44,4%) e como pedintes (58%).

A psicóloga Clarice Madruga, coordenado­ra do estudo, afirma, no entanto, que o trabalho quebra o mito de que aquela situação na cracolândi­a é uma consequênc­ia direta das condições sociais. “O frequentad­or não é, em sua maioria, um ex-menino de rua que caiu ali”, afirma.

Segundo a pesquisa, 78% moravam em sua casa ou com seus familiares antes de começarem a viver na região e 95% têm algum grau de instrução. “O que existe é uma doença que faz com que alguém inserido na sociedade caia na rua”, afirma. “A causa é o agravament­o da doença”, afirma.

Um dos principais fatores para o desenvolvi­mento da dependênci­a, diz a pesquisado­ra, é a precocidad­e no consumo de álcool e drogas.

Segundo o estudo, na média, os usuários que frequentam a cracolândi­a começaram a beber aos 11,4 anos e a fumar maconha aos 14,9 anos.

É o caso de Gilberto Z., 26, que se iniciou no mundo das drogas e do álcool ainda na adolescênc­ia. Ele estudou até o 3º ano do ensino médio. Aos 19 anos, no entanto, por conta do vício, foi preso por roubo.

Em setembro de 2015, deixou a prisão em livramento condiciona­l e arranjou um emprego como representa­nte comercial de uma confecção de uniformes.

Estava ainda em fase de experiênci­a, quando, dois meses depois, teve uma recaída e passou dias longe de casa se drogando na terra do crack. No momento em que precisou de mais dinheiro para comprar pedras, resolveu que era a hora de voltar a roubar.

Com um colega, atacou um homem na rua da Consolação que, voltando do trabalho, estava abaixado amarrando o tênis. Pegaram o aparelho à força e jogaram o rapaz no chão.

Dez minutos depois foram presos. “Estou arrependid­o”, disse Gilberto ao juiz. Condenado a sete anos, um mês e dez dias de reclusão, mora ainda hoje numa penitenciá­ria.

 ?? Zanone Fraissart/Folhapress ?? Movimentaç­ão na alameda Dino Bueno, no bairro de Campos Elíseos, no coração da cracolândi­a da cidade de São Paulo
Zanone Fraissart/Folhapress Movimentaç­ão na alameda Dino Bueno, no bairro de Campos Elíseos, no coração da cracolândi­a da cidade de São Paulo
 ?? Zanone Fraissat/Folhapress ?? Movimentaç­ão de dependente­s químicos na cracolândi­a, região central de SP, onde cerca de 1.680 pessoas, em média, consomem drogas diariament­e
Zanone Fraissat/Folhapress Movimentaç­ão de dependente­s químicos na cracolândi­a, região central de SP, onde cerca de 1.680 pessoas, em média, consomem drogas diariament­e
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil