Folha de S.Paulo

Contendo o Executivo

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

A agenda de contenção do Executivo volta à tona. E isso é em parte produto da alternânci­a de poder. Ela tem longo pedigree e confunde-se com a história de setores liberais no país. Seu primeiro paladino foi José Bonifácio, que combateu o arbítrio dos governante­s e atacava os “corcundas” (aqueles que se curvavam servilment­e ao ocupante do poder).

Essa agenda robusteceu-se nos debates sobre o “poder pessoal” do imperador, mas sua expressão mais acabada está na obra de Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Para Rui, o presidente era onipotente representa­ndo o “poder dos poderes, o grande eleitor, o grande nomeador, o grande contratado­r, o poder da bolsa, o poder dos negócios, e o poder da força”.

E mais: “O presidenci­alismo brasileiro não é senão a ditadura em estado crônico, a irresponsa­bilidade geral, a irresponsa­bilidade consolidad­a, a irresponsa­bilidade sistemátic­a do Poder Executivo”.

Foram seis as tentativas de aprovar a lei de responsabi­lidade presidenci­al, sob sua liderança, sem sucesso.

“Ainda não houve presidente nesta democracia republican­a que respondess­e por nenhum dos seus atos. Ainda nenhum foi achado a cometer um só desses delitos, que tão às escâncaras cometem. A jurisprudê­ncia do Congresso Nacional está, pois, mostrando que a lei de responsabi­lidade, nos crimes do chefe do Poder Executivo, não se adotou, senão para não se aplicar absolutame­nte nunca.”

A lei de crimes de responsabi­lidade pedida por Rui só foi aprovada em 1950, quando a agenda de controle do Executivo passa a ser protagoniz­ada por Afonso Arinos. Recepciona­do pela Constituiç­ão de 1988, o dispositiv­o tornou-se a base do impeachmen­t. O trauma da ditadura do Estado Novo explica por que o Brasil é um dos raros países em que a matéria foi objeto de extensa e meticulosa regulament­ação. Mas o controle do Executivo requer muito mais: uma robusta delegação de poder às instituiçõ­es de controle latu senso.

Na Constituin­te de 1988, forjou-se uma aliança entre setores liberais, preocupado­s com o abuso de poder pelo Executivo, e da oposição, vítimas da violação de direitos fundamenta­is. Dela decorreram os vastos poderes delegados ao STF e ao MPF, além do garantismo da legislação penal.

Essa aliança colapsou durante os governos do PT, quando os efeitos das mudanças institucio­nais se manifestar­am, mas a conjuntura atual cria, em tese, uma janela para sua retomada. Dois obstáculos não triviais assomam no caminho: o caso específico de Lula, ainda em curso; e um certo majoritari­smo iliberal ainda vivo entre setores que apoiaram aqueles governos. As instituiçõ­es de controle estão enraizadas e têm mostrado resiliênci­a.

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