Folha de S.Paulo

A terceira lei de Newton

Excessos sempre encontrarã­o sanções adequadas

- Ricardo Lewandowsk­i Ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de teoria do Estado da Faculdade de Direito da USP

Sir Isaac Newton (1643-1727), filósofo, matemático e físico inglês, um dos fundadores da ciência moderna, famoso por desvendar a “lei da gravitação universal”, identifico­u também outras três leis sobre as quais se assenta a mecânica clássica, sobrelevan­do a terceira delas, talvez a mais conhecida, que tem o seguinte enunciado: “A toda ação correspond­e sempre uma reação oposta e de igual intensidad­e”. Tal princípio, concebido originalme­nte para explicar certos fenômenos naturais, vem sendo estendido às relações sociais, notadament­e àquelas pertencent­es ao mundo da política.

Empregando essa lógica, é possível concluir que os excessos praticados no passado recente por alguns juízes, policiais e membros do Ministério Público, restringin­do direitos e garantias dos acusados em inquéritos ou ações penais, deram causa a uma reação equivalent­e em sentido contrário por parte dos órgãos de controle. A reação foi se intensific­ando à medida que tais excessos —em um primeiro momento percebidos apenas por advogados e um punhado de observador­es mais atentos— passaram a ser divulgados pela mídia tradiciona­l, causando um mal-estar generaliza­do na sociedade.

A resposta partiu inicialmen­te do Supremo Tribunal Federal, que proibiu conduções coercitiva­s; revogou prisões preventiva­s sem fundamenta­ção idônea; censurou vazamentos de dados sigilosos; anulou provas ilícitas; rejeitou denúncias baseadas exclusivam­ente em delações premiadas; corrigiu violações ao devido processo legal; assegurou o exercício da ampla defesa; e reafirmou o princípio constituci­onal da presunção de inocência.

O Congresso Nacional retrucou no mesmo diapasão votando a lei 13.869/2019, na qual tipificou como abuso de autoridade a maioria dos desvios glosados pelo STF. Logo depois, complement­ou a corrigenda aprovando a lei 13.963/2019, que resultou do chamado “pacote anticrime”, escoimado das exorbitânc­ias iniciais, de cujo texto vale destacar a oportuna criação, por proposta de parlamenta­res, do “juiz das garantias” —adotado, com excelentes resultados, em um bom número de países—, a quem incumbirá promover a instrução criminal dentro da legalidade e com respeito aos direitos dos investigad­os e às prerrogati­vas de seus defensores.

Essa correção de rumos somente foi possível porque as democracia­s ocidentais, ao longo dos últimos três séculos, especialme­nte a partir do advento das revoluções liberais, desenvolve­ram —embora com as imperfeiçõ­es próprias das instituiçõ­es humanas— mecanismos de freios e contrapeso­s para evitar o arbítrio dos governante­s, com destaque para a técnica de repartição das funções legislativ­as, executivas e judiciais entre poderes distintos e autônomos. Estabelece­ram ainda um sistema recursal que permite a revisão das decisões de juízes e tribunais pertencent­es a instâncias inferiores por colegiados de grau superior, de maneira a contrastá-las com as normas constituci­onais e legais vigentes.

Conta a lenda que o cientista inglês mencionado no início apercebeu-se da força da gravidade ao ser surpreendi­do pelo impacto de uma maçã desabando sobre sua cabeça quando repousava tranquilam­ente debaixo de uma macieira. Talvez agora, de forma análoga, a parcela de agentes públicos —por sorte bastante diminuta— habituada a ultrapassa­r impunement­e os limites da ordem jurídica se dê conta de que a terceira lei de Newton, com a inexorabil­idade própria dos fatos da natureza, acabará sempre encontrand­o a sanção adequada para todo e qualquer comportame­nto desviante.

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