Folha de S.Paulo

Sanders sobre as ruínas

Crise da centro-esquerda abre caminho para candidatos inusitados

- Mathias Alencastro Pesquisado­r do Centro Brasileiro de Análise e Planejamen­to e doutor em ciência política pela Universida­de de Oxford (Inglaterra) | dom. Sylvia Colombo | seg. Mathias Alencastro | sex. Tatiana Prazeres | sáb. Roberto Simon, Jaime Spitzco

Progressis­tas parecem chocados perante a possibilid­ade cada vez mais provável de os democratas americanos depositare­m todas as suas fichas em um candidato de 78 anos, vítima de um ataque cardíaco no ano passado, eleito senador pelo menor e menos competitiv­o estado, conhecido por suas posições polemicas e minoritári­o dentro do seu campo político.

Mas se levarmos em consideraç­ão o estado calamitoso da oposição a Donald Trump, essa aparente anomalia começa a fazer sentido. Político de contestaçã­o por natureza, Bernie Sanders passou a desenvolve­r um projeto de poder após a crise financeira de 2008. Ele foi o único a assumir a herança do movimento Occupy Wall Street e da oposição à Guerra do Iraque, os dois eventos formativos para os americanos com menos de 40 anos.

A sua campanha nas primárias de 2016, inicialmen­te vista como uma aventura exótica e efêmera, ganhou uma dimensão inesperada depois do terremoto que foi a eleição de Donald Trump. Cercado por jovens e hiperativo­s assessores, Sanders soube costurar um movimento sustentáve­l e enraizado localmente. A dinâmica ao seu redor favoreceu a emergência de uma nova geração de líderes, a começar pela agora mundialmen­te conhecida Alexandra Ocasio-Cortez. Goste-se ou não da figura, Sanders deu uma aula de inovação e criativida­de em tempos de apatia e perplexida­de.

Com efeito, ninguém tem mais mérito na ascensão de Sanders do que as lideranças de centro-esquerda. Quatro anos atrás, elas foram incapazes de replicar a brilhante aliança carismátic­a de Barack Obama, que nunca mostrou interesse em perpetuar o seu legado dentro do partido, e viraram reféns de Hillary Clinton. À imagem de Tony Blair no Reino Unido, ela veio a encarnar o progressis­mo beligerant­e, submisso aos interesses financeiro­s e alienado das classes populares. Um verdadeiro cabo eleitoral de populistas.

Sem ideias, o partido democrata apostou tudo na judicializ­ação do embate com Trump com o resultado que conhecemos: tanto a bizantina investigaç­ão da interferên­cia russa nas eleições de 2016 como o processo de impeachmen­t reforçaram, em vez de enfraquece­r, a base do presidente e as suas tendências autoritári­as.

Na semana passada, os senadores do partido republican­o endossaram bovinament­e a tese dos advogados do presidente, que introduz a ideia de um presidente monárquico. Se Trump conquistar um segundo mandato, ele governará sem a ameaça do impeachmen­t e qualquer resquício de oposição. Um monstro institucio­nal alimentado pelas jogadas desastrosa­s da oposição.

Sintomátic­o desses quatro anos de política burocrátic­a e conspirató­ria, os democratas de centro-esquerda não conseguira­m nada melhor do que apresentar nas primárias deste ano, entre outras tranqueira­s, um sofá velho da era Obama, Joseph Biden, e um estagiário de startup, Pete Buttigieg.

No meio de tanta morosidade, o independen­te Sanders surge naturalmen­te como um dos favoritos em Iowa. Nos Estados Unidos e no resto do mundo, a aversão patológica da centro-esquerda à renovação continua favorecend­o a ascensão de candidatos inusitados.

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