Folha de S.Paulo

Bem-vindo ao mundo, sobrinho

Queria escrever uma coluna que tivesse a leveza da vida recém-chegada

- Thiago Amparo Advogado, é professor de políticas de diversidad­e na FGV Direito SP e doutor pela Central European University (Budapeste)

Querido Arthur. Bem-vindo ao mundo, meu primeiro sobrinho. Confesso não acreditar nesta coisa de felicidade absoluta, Arthurzinh­o. Até hoje, parecia metafísica divina. Linda, mas distante como as abóbodas douradas que nas igrejas nos fazem sentir longe de Deus.

Quando te vi, num estado de paz tão palpável quanto esse cobertor que te envolve, minha incredulid­ade sucumbiu à realidade. Mesmo que a felicidade absoluta seja, quem sabe, tão rara quanto um palíndromo, vê-lo chegando assim ao mundo me fez nela acreditar.

Lembrei Drummond, Arthur. Não se preocupe, eu vou te apresentar a ele. Espero que esteja escondido entre seus genes a mesma paixão que tenho pelos mundos criados pelos livros, mesmo diante ou talvez a partir da concretude áspera da vida.

Livros são seres mágicos que nos tornam livres. Em 1974, Drummond escreveu uma crónica de jornal chamada “Brasileiro Cem-Milhões”. Escreveu: “Telefonei para a maternidad­e indagando se havia nascido o bebê nº 100.000.000, e não souberam informar-me: —De zero hora até este momento nasceram oito, mas nenhum foi etiquetado com esse número.”

Arthur, talvez você já seja o bebê nº 211.070.679. O que importa? Persiste o que Drummond escreveu há 111 milhões de bebês: “gostaria que viesse ao mundo com um mínimo de garantia contra as compulsões da miséria e da injustiça, e de algum modo representa­sse situação idêntica de milhões de outras crianças que recebessem —estou pedindo muito? —não somente o dom da vida, mas oportunida­des de vivê-la.”

É culpa sua eu não conseguir escrever uma coluna hoje que falasse de direitos, ou da falta deles. Afinal, foi pra isto que esta Folha me deu este espaço.

Te ver nascer, meu sobrinho, me deu esperança. E esperança é a razão pela qual lutamos por um mundo melhor. Há muita razão para se ter esperança, Arthur. Não deixem que lhe digam o contrário.

Procure nos olhos daqueles que sofrem neste mundo injusto, enquanto houver humanidade, haverá esperança. Uma semana antes de você nascer, Coalizão Negra por Direitos publicou uma carta de esperança por um país mais justo.

Hoje era para eu ter escrito aqui sobre outras coisas, Arthur. Há um ano, no dia 8 de fevereiro de 2019, policiais mataram 13 pessoas nas comunidade­s do Fallet, Fogueteiro e Prazeres no Rio de Janeiro.

Nesta segunda (03), a ONG Human Rights Watch provou, com base em laudos de peritos internacio­nais, a necessidad­e de reabertura das investigaç­ões. Autópsias foram tecnicamen­te pífias, para não dizer grotescas. Corpos foram levados para o hospital, possivelme­nte para ocultar provas e não para salvar as vítimas.

Era para eu ter escrito sobre isso. Ou sobre como mais pessoas morrem nas mãos da polícia no RJ do que em todo o estado de SP nas mãos de criminosos. O que resta da farda quando não sabemos mais diferencia­r aqueles destes? Arthur, o mundo é violento. Mas pessoas desde sempre lutaram para que ele seja melhor para você.

Não desistirem­os, meu querido sobrinho. Quando te vi, entendi para que serve nossa luta. Quando te vi, quis escrever pelo menos uma vez uma coluna que tivesse a leveza da vida recém-chegada ao mundo.

Certa feita, outro escritor que te apresentar­ei, Ta-Nehisi Coates escreveu uma carta para seu filho intitulada “Entre o mundo e eu”.

Ele escreveu: “este é seu país, este é seu mundo, este é seu corpo, e você tem de encontrar algum modo de viver dentro de tudo isso.” Arthur, direitos humanos são sobre lutar para que crianças como você possam viver livres de medo. Onde a vida seja só esse seu sorriso que desaba esperança sobre nós. Obrigado, Arthurzinh­o.

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