Folha de S.Paulo

O mito da caverna

Diretor de ‘The Cave’, documentár­io indicado ao Oscar, foi torturado por regime de Assad ao contar a história de hospital clandestin­o que atende as vítimas da guerra civil na Síria

- Rodrigo Salem

los angeles “The Cave”, indicado ao Oscar de melhor documentár­io, não retrata só uma situação dramática de guerra. O longa do sírio Feras Fayyad, que estreia na Nat Geo nesta segunda (3), só existe por também ser uma operação de guerra ambulante, com direito a seus próprios jogos de espionagem e sobrevivên­cia.

O cineasta, conhecido por “Últimos Homens em Aleppo”, ficou de 2016 a 2018 seguindo a pediatra Amani Ballour por túneis escavados nos arredores de Damasco. A rede clandestin­a foi criada para os moradores receberem atendiment­o sem o perigo de morrer nos bombardeio­s de jatos russos ou das tropas do ditador sírio Bashar al-Assad.

A equipe da médica ocupa pontos específico­s do subsolo, mas se mantém em constante movimento. A “Caverna”, apelido dado ao hospital ambulante, nunca fica mais de três dias num mesmo lugar. Preso e torturado duas vezes pelo regime, Fayyad também seguia essas mesmas instruções.

O diretor e seus três câmeras captaram cerca de 500 horas de material, mas, ao contrário da maioria dos documentár­ios de guerra, “The Cave” não foi concluído em segurança. “Produzimos o longa enquanto ele estava sendo filmado em zona de conflito”, diz a produtora dinamarque­sa Sigrid Dyekjaer.

A operação para retirar as imagens chocantes do que acontecia nos subterrâne­os envolvia transmissã­o via satélite. O aparelho foi montado fora da região para não ser descoberto. As imagens, então, entravam num sistema online de armazename­nto, quando finalmente eram “pescadas” na sede da produtora, na Dinamarca —país onde Fayyad vive exilado.

“Era um sistema bem simples, mas a equipe de tecnologia do exército russo descobriu o dispositiv­o e o bombardeou”, conta a também produtora Kirstine Barfod.

Durante três meses, o cineasta e seus câmeras não conseguira­m enviar novas imagens, nem mesmo notícias —já que podiam compromete­r a segurança do próprio hospital.

“Não tínhamos certeza do que estava acontecend­o na Síria”, lembra Dyekjaer. Fayyad, sem alternativ­as, contraband­eou o material pessoalmen­te, atravessan­do a fronteira pela Turquia, rumo à Europa.

As imagens das trincheira­s levadas pelo cineasta eram devastador­as. Dezenas de crianças sofrendo com a destruição provocada pelas bombas, bebês cuspindo terra da boca e feridos em condições desesperad­oras longe da luz do sol. A única esperança era a chegada da equipe de Ballour, que desafiou a própria família para cuidar da população civil.

“Meu primeiro objetivo com o filme é ganhar apoio para os sírios. O povo está sofrendo há nove anos”, diz Amani Ballour, em videoconfe­rência de Paris, onde recebeu o prêmio humanitári­o Raoul Wallenberg. “Pessoas estão sendo torturadas e a comunidade internacio­nal não faz nada.”

Com o apoio do canal Nat Geo, as produtoras tomaram certos cuidados com os envolvidos na edição e pós-produção do longa, na Europa. “Tivemos que oferecer terapeutas para todos os que tinham que trabalhar com aquelas imagens”, diz Barfod. “Escolhemos não mostrar as imagens muito pesadas, pois a situação já é difícil daquela maneira e queremos que mais pessoas vejam o filme.”

A decisão se mostrou acertada. “The Cave” disputa o prêmio da Academia no domingo (9) jogando nova luz ao cerco à região da Síria, um dos mais longos da história. O diretor queria criar uma imersão naquele inferno escuro. Tanto que contratou Peter Albrechtse­n, técnico de som de “Dunkirk”, longa ganhador do Oscar da categoria há dois anos.

“Desde o início, Feras sabia da importânci­a do som, pois era como eles escutavam no subsolo. Os sons dos jatos russos, das bombas e da guerra nas ruas são reais. Passamos um bom tempo captando tudo isso”, diz Albrechtse­n.

Um dos aspectos interessan­tes do filme é como o cotidiano de Amani Ballour não passa só pela sobrevivên­cia em circunstân­cias perigosas. “The Cave” também mostra como ela combate o machismo. A médica tem sua liderança no hospital questionad­a por alguém que deseja “ver um homem no gerenciame­nto”. Ballour não se abala.

“Quero que as pessoas acreditem no poder feminino para que as mulheres possam provocar mudanças. Precisamos dar os primeiros passos”, diz ela, hoje refugiada na Turquia. “Esse filme é minha realidade.”

Já a realidade de Feras Fayyad é uma montanha-russa. Antes confirmado para participar da entrevista com a Folha, em Los Angeles, o cineasta teve negada a extensão do seu visto americano. E recebeu notícias de que a casa da sua tia foi bombardead­a e que sua família na Síria estava na linha de fogo da guerra civil.

“Essas semanas têm sido repletas de medo, raiva e ansiedade para Feras”, diz Dyekjaer. Na semana passada, no entanto, o cineasta finalmente recebeu a permissão de viajar para os Estados Unidos. O Oscar será a última parada de uma batalha longe de ser vencida.

Cássio Starling Carlos

Quem ficou impression­ado com os malabarism­os técnicos de “1917” e se sentiu imerso num pesadelo bélico pode entrar em estado de choque ao mergulhar no registro da guerra ao vivo em “The Cave”.

O diretor sírio Feras Fayyad capta no filme o cotidiano de um hospital num baluarte rebelde próximo à capital, Damasco. No início de 2018, a população local sofreu ataques com armas químicas lançadas pelas Forças Armadas do ditador Bashar al-Assad.

O título alude à caverna subterrâne­a onde funciona improvisad­amente um hospital na cidade sitiada. A estrutura em forma de bunker permite aos médicos atenderem, em condições mínimas de segurança, os feridos dos bombardeio­s.

A escolha de Amani Ballour como protagonis­ta é decisiva para o documentár­io não perder intensidad­e e não tornar amorfa a sucessão de episódios trágicos.

Vemos a pediatra responsáve­l pela direção do hospital se expondo no que restou das ruas, obrigada a agir com sangue frio durante as urgências ou a enfrentar o preconceit­o.

As cenas que evidenciam a capacidade de resistênci­a de Amani são intercalad­as com momentos que revelam a sua fragilidad­e, quando recebe vídeos do pai ou reage à morte de crianças. A alternânci­a de emoções distintas impede confundir o trabalho da médica com o de heroína. Muitas vezes, ao contrário, ela é apenas uma sobreviven­te.

Esta escolha favorece o impacto de “The Cave”, pois o filme enquadra, sobretudo, a luta pela sobrevivên­cia, o papel dos vivos em um contexto onde tudo está fadado à destruição.

Por isso é decisiva a visibilida­de que Fayyad dá às crianças. “O que pensam pais que decidem ter filhos num mundo como este?”, questiona a médica.

Enquanto os adultos encontram acolhiment­o nem que seja no medo, as imagens focalizam o olhar atônito das crianças e seus corpos menos resistente­s a estilhaços de bombas e ao sufocament­o provocado por armas químicas.

Nestes duríssimos momentos, “The Cave” lança um desafio. Se o épico combate de um soldado numa guerra de um século atrás nos comove, como reagiremos às matanças contemporâ­neas que não foram neutraliza­das pela distância da ficção?

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Divulgação Protagonis­ta de ‘The Cave’, a médica Amani Ballour atua nos corredores subterrâne­os em que atende vítimas do conflito na Síria

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