Folha de S.Paulo

A ditadura boliviana e a hipocrisia dos castelos

Associação criminosa ou mutismo colaboraci­onista?

- Breno Altman Jornalista e fundador do site Opera Mundi

O governo de Jeanine Áñez, empossada por um golpe de militares e civis no dia 12 de novembro de 2019 na Bolívia, há quase três meses deixa um rastro de sangue e arbítrio. A usurpação do poder assenta-se sobre a violência repressiva e a cumplicida­de internacio­nal das forças conservado­ras, protegendo o regime de exceção sob um manto de silêncio.

Pelo menos 36 pessoas foram mortas à bala por soldados, policiais e paramilita­res desde a derrubada de Evo Morales. São cerca de mil os bolivianos feridos, mais de 1.500 os presos sem culpa formada. Dezenas se refugiaram, perseguido­s à revelia de qualquer amparo jurídico, como o próprio ex-presidente. Rádios comunitári­as foram fechadas, canais internacio­nais tiveram seus sinais interrompi­dos e jornalista­s acabaram presos por subversão.

Novas eleições gerais estão convocadas, para o dia 3 de maio, para eleger um novo presidente da República e renovar o Poder Legislativ­o.

São muitos os sinais, porém, de que o governo Áñez opera para uma farsa continuíst­a.

Tão logo o Movimento para o Socialismo (MAS), partido de Evo, definiu que Luis Arce, ex-ministro da Economia, seria o candidato da legenda, o Ministério Público abriu processo de investigaç­ão contra o postulante, tentando envolvê-lo em supostos e obscuros crimes de corrupção. Também o ex-presidente voltou a ser vítima de jogo sujo. No dia 31 de janeiro foi detida a sua advogada, Patricia Hermosa, encarregad­a de inscrevê-lo, por procuração, para disputar uma cadeira ao Senado. Além da prisão injustific­ada, a polícia se apoderou da documentaç­ão necessária para o registro da candidatur­a, somente efetivado porque, por cautela, havia segundas vias da papelada exigida.

Esses são apenas alguns fatos que ilustram o descomprom­isso da ditadura com um processo eleitoral livre e democrátic­o. Áñez e seus associados, embora divididos em diversas chapas para as eleições de maio, de tudo fazem para impedir que o MAS possa ter condições razoáveis e equilibrad­as de competição com os partidos de direita.

Ações repressiva­s e manobras espúrias têm sido ampliadas desde que pesquisas começaram a destacar o favoritism­o de Arce. Prisões, impugnaçõe­s e outros ardis estão em curso, através do sistema de Justiça, para privilegia­r os grupos vinculados ao golpe de novembro. Esses setores, aliás, aproveitam-se do estado de exceção para impor uma nova política econômica e social, além de alterar o alinhament­o geopolític­o do país, em aberto desrespeit­o à soberania popular.

Apesar de incontávei­s esbulhos contra a ordem constituci­onal e da violação em escala industrial dos direitos humanos, os autoprocla­mados campeões mundiais da democracia oferecem seu aval à ditadura. A Casa Branca, a OEA (Organizaçã­o dos Estados Americanos), os principais governos do hemisfério e os mais relevantes veículos de comunicaçã­o, entre outros castelos do mundo ocidental, oscilam entre associação criminosa e mutismo colaboraci­onista.

A Bolívia funciona, para essa gente, como um campo de testes. Se a ditadura conseguir se institucio­nalizar por meio de uma fraude eleitoral, os neoliberai­s concluirão que golpes clássicos e regimes neofascist­as podem voltar a ser parte destacada do arsenal operativo das oligarquia­s e dos Estados imperialis­tas.

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