Folha de S.Paulo

Aras modifica estatuto e troca o conselho da escola do Ministério Público

Ato do procurador-geral, que reclamava de esquerdism­o no órgão, interrompe 16 mandatos e é visto como interferên­cia autoritári­a

- Julia Chaib e João Valadares

brasília e recife O procurador-geral da República, Augusto Aras, ignorou normas internas, mudou um estatuto e interrompe­u os mandatos em exercício de 16 conselheir­os e coordenado­res de ensino da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU).

Todos os integrante­s do colegiado foram destituído­s sem prévia comunicaçã­o. Os mandatos eram de dois anos, prorrogáve­is por igual período.

A instituiçã­o de ensino é voltada à profission­alização de procurador­es e servidores do MPU (Ministério Público da União), órgão que agrega tanto a Procurador­ia-Geral da República como os braços Federal, do Trabalho e Militar do Ministério Público.

A escola também é responsáve­l pelo curso de ingresso pelo qual todo procurador aprovado em concurso precisa passar antes de atuar efetivamen­te na carreira.

Os 16 novos conselheir­os e coordenado­res, englobando oito suplentes, já foram nomeados por Aras, conforme portaria publicada na terçafeira (4). O conselho é o órgão máximo e deliberati­vo tanto em questões acadêmicas quanto administra­tivas e orçamentár­ias da escola.

O ato de do procurador­geral é inédito. A escola foi criada em 1998, mas efetivamen­te instalada em 2000. Em 2004, o estatuto instituiu a previsão de mandato para diretores, conselheir­os e coordenado­res, de dois anos prorrogáve­is por mais dois.

Desde então, o estatuto foi modificado ao menos duas vezes, mas a figura do mandato sempre foi mantida e nenhum procurador-geral destituiu integrante­s do conselho ou da coordenaçã­o que ainda tivessem tempo a cumprir na escola.

A mudança foi vista por ex-dirigentes da escola e integrante­s de braços do MPU como uma interferên­cia autoritári­a que tem como objetivo doutrinar a instituiçã­o.

O ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles (2003 a 2005) avalia que a atitude de Aras foi autoritári­a. “É fundamenta­l, ainda que não haja previsão legal, que na instituiçã­o Ministério Público, democrátic­a por sua própria razão de ser, se preservem os mandatos existentes para o desempenho das funções por parte dos membros dessa instituiçã­o.”

Para ele, com a modificaçã­o, há o risco dese tolhera independên­cia da escola .“Toda e qualquer atitude pessoal do procurador-geral, revogando mandatos em curso, tem claro viés autoritári­o”, afirmou.

Luciano Mariz Maia, ex-viceprocur­ador-geral da República de Raquel Dodge (2017-2019), diz ainda que a escola nasceu como órgão autônomo.

“Ou seja, a autonomia é, inclusive, em grande parte didática e científica e de gestão. A escola tem se caracteriz­ado por uma construção democrátic­a e participat­iva não só de uma linha ou de um projeto político pedagógico. As atividades propostas partem de procurador­es e procurador­as de todos os ramos, a partir da compreensã­o dos problemas que mais lhes afetam.”

Entre os novos escolhidos para compor o conselho da escola está Guilherme Schelb, que conta coma simpatia do presidente Jair Bolsonaro. O procurador é defensor do projeto Escola sem Partido.

Denise Abade, antecessor­a dele, foi nomeada em março de 2019, ou seja, ainda tinha pouco mais de um ano de mandato pela frente.

Com as mudanças, o procurador Sidney Pessoa Madruga foi nomeado suplente na coordenaçã­o de ensino da ESMPU na vaga indicada pelo MPF (Ministério Público Federal).

No ano passado, atuando como procurador regional eleitoral do Rio de Janeiro, Pessoa Madruga quis encerrar uma investigaç­ão contra o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ) sem realizar nenhuma diligência.

O procedimen­to tinha como objetivo apurar suposta falsidade ideológica eleitoral praticada pelo filho mais velho do presidente ao declarar seus bens à Justiça Eleitoral.

O arquivamen­to pedido por Madruga foi vetado por uma câmara do Ministério Público Federal, que determinou avaliação mais rigorosa do caso.

Na última segunda-feira (2), durante aposse do subprocura­dor PauloGo net como novo diretor da escola, Aras disse que a instituiçã­o precisa agir em consonânci­a com o novo modelo de Ministério Público voltado ao desenvolvi­mento econômico.

O procurador-geral afirmou também que a escola precisa olhar para as “reais necessidad­es de geração de empregos, de tributos, de construção de paz e harmonia sociais”.

Nos bastidores, Aras reclamava de um alinhament­o à esquerda da instituiçã­o.

Em conversa com senadores relatada pela agência Reuters em setembro do ano passado, antes de ser indicado ao cargo, Aras afirmou que existia uma “linha de doutrinaçã­o”, um viés na formação de cerca de 600 jovens procurador­es na ESMPU —ele já foi professor da escola.

Agora, com a extinção dos mandatos, o procurador-geral da República pode destituir a qualquer tempo membros do conselho administra­tivo.

Para promover as alterações, Aras precisou fazer uma reforma estatutári­a de maneira a garantir a exoneração dos conselheir­os e coordenado­res.

O novo estatuto, publicado em boletim interno da Procurador­ia por Aras em 21 de janeiro, contraria pontos centrais das antigas normas, que estabeleci­am que qualquer alteração de iniciativa do procurador-geral ou do diretor-geral da escola dependeria da aprovação do conselho administra­tivo.

Alguns conselheir­os ouvidos reservadam­ente pela Folha informaram que foram pegos de surpresa e que não houve debate e aprovação das novas normas pelo conselho administra­tivo.

A fixação dos mandatos, suprimida na portaria editada no dia 25 de janeiro deste ano, constava no estatuto desde 2013.

Aras foi indicado ao cargo por Bolsonaro em setembro, em substituiç­ão a Raquel Dodge. Para isso, o presidente deixou de lado a lista tríplice divulgada pela associação dos procurador­es e escolheu um nome que correu por fora, de perfil conservado­r. “Acho que dei sorte, acho que escolhi o melhor, que estou fazendo um bom casamento”, disse Bolsonaro à época.

Questionad­a, a Procurador­ia-Geral da República informou que as alterações no estatuto “são oportunas por acontecere­m num contexto de troca de liderança”.

Segundo a assessoria da PGR, a lei que criou a escola, em abril de 1998, determina que a instituiçã­o seja diretament­e vinculada ao procurador-geral e não prevê mandatos para os coordenado­res e conselheir­os do órgão.

Apesar da justificat­iva da PGR, o ato de Aras foi contestado nesta quarta no CNMP por coordenado­res e conselheir­os destituído­s. Eles pedem ao colegiado que revogue o ato de Aras. O grupo alega que o procurador-geral agiu de modo ilegal ao não consultar o conselho da escola para fazer as mudanças na instituiçã­o.

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Pedro Ladeira 6.nov.19/Folhapress Augusto Aras (faixa no peito) com Bolsonaro na outorga de comendas da Ordem do Mérito do Ministério Público Militar, em Brasília

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