Folha de S.Paulo

Ódio do bem

Pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado Hübner

Zé de Abreu sairá intacto depois de dizer o que disse de Regina Duarte. Habituais feministas, como previsível, não saíram em defesa de Regina, pela exata razão posta pelo Zé: não basta ser mulher para merecer alguma coisa (respeito?). É preciso mais.

Fundamenta­lmente, é preciso não ser uma “fascista”, sendo o fascismo, nos dias que correm, um conceito bastante flexível. Tudo, aliás, parece bastante flexível. Ninguém larga a mão de ninguém, desde que seja uma mão amiga. Se for a mão da Regina Duarte, larga. Sem pena. Afinal ela é uma “fascista”, um tipo abaixo do “ser humano”, não é mesmo?

É a mesma lógica que permite dizer que não basta ser negro, é preciso pensar do jeito certo, e a partir daí achar normal chamar o vereador negro Fernando Holiday de “capitãozin­ho do mato”. Afinal, a cor da pele é apenas um critério muito frágil para o respeito. A questão central continua sendo a mesma: qual é mesmo o seu “lado”?

No caso de Holiday, a Justiça não caiu nessa conversa. Condenou Ciro Gomes por injúria racial. Racismo é crime no Brasil, independen­temente da orientação ideológica e da cor da pele de agressores e agredidos. Talvez Ciro tenha imaginado que iria escapar da Justiça por ofender alguém de “direita”. Não colou.

Desconfio que Zé de Abreu pensou o mesmo sobre Regina Duarte. Agredir uma mulher de direita não dá nada, certo? É o machismo do bem, como bem definiu o Pedro Fernando Nery. Nesse caso parece que colou.

Há muito o que aprender com essas coisas todas. A primeira delas é que elas ocorrem em torno da internet. Sempre lembro da tese da neurocient­ista Susan Greenfield: a internet é um espaço de baixa empatia. “Não vemos a pessoa ficar vermelha, engolir a seco, ficar nervosa”. É mais fácil atacar um boneco do que um ser humano.

Outra lição é que o ódio não tem lado. Por algum tempo se cultivou a lenda de que havia uma direita intolerant­e e uma esquerda bacana. Na campanha eleitoral, lembro da turma que achava que as fake news vinham apenas de um lado do jogo.

Fascinante é esse fenômeno do ódio do bem. Significa o seguinte: eu cuspo no outro, chamo de fascista, digo que ele destrói a democracia, a civilizaçã­o, que nem sequer devia existir. Mas excluo meu ódio do conceito de intolerânc­ia. E durmo tranquilo. Tudo isso vem de muito longe, mas ganhou contornos dramáticos em nossas democracia­s polarizada­s. Li um estudo recente mostrando como a polarizaçã­o não define apenas ideias, mas também a visão “objetiva” que cada um faz da realidade. Diria que também afeta nossa sensibilid­ade moral.

Foi o que vimos na sessão do Estado da União, um dos mais solenes momentos da democracia americana. Quem gosta de Trump achou indigna a cena de Nancy Pelosi rasgando o discurso presidenci­al; quem não gosta, ficou indignado com a imagem de Trump recusando a mão estendida por Pelosi.

A pergunta óbvia a fazer é a seguinte: o que ganhamos, coletivame­nte, quando tudo for submetido, incluindo-se aí nossos juízos morais, à lógica da polarizaçã­o política?

A resposta é simples: coletivame­nte não ganhamos nada, mas cada um supõe levar alguma vantagem. A democracia se torna um jogo não cooperativ­o. Em seu clássico dos anos 1950, Anthony Downs já alertava para os riscos da polarizaçã­o. “Metade do eleitorado acha que a outra metade está impondo políticas repugnante­s”.

Tem uma receita aí. Se alguém quiser ajudar, pare de fingir que está tudo certo do seu lado e errado do outro. A sugestão é meramente retórica. As pessoas não farão isto.

Quem sabe a solução venha de uma nova divisão de trabalho: na epiderme do mundo político, definido basicament­e pelas mídias sociais, o bate-boca diário; um degrau abaixo, no plano das instituiçõ­es, consensos provisório­s vão se produzindo.

Não é assim que funciona no Brasil de hoje? No primeiro plano, andamos na Alemanha dos anos 1930, à beira do abismo; no segundo, o presidente da Câmara comemora o inédito protagonis­mo do Congresso em nossa democracia.

É possível que este seja apenas um experiment­o brasileiro. É possível que a contaminaç­ão do ódio digital sobre o mundo real da decisão pública seja muito mais profunda. É tudo bastante novo, e por isso vale a pena pensar a respeito.

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