Folha de S.Paulo

Bolsonaro faz demagogia com gasolina

Corte de imposto sobre combustíve­is quebraria estados e criaria crise no governo federal

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

Zerar os impostos sobre combustíve­is é uma ideia obviamente lunática. Os motivos do desvario são mais obscuros.

Foi apenas mais um tiro da roleta-russa de disparates de Jair Bolsonaro? Ou foi tentativa muito vulgar e manjada, nem por isso ineficaz, de fazer demagogia, de arrumar bodes expiatório­s?

Ou seja, o governo lança uma ideia inexequíve­l, de apelo popular, mas que será criticada por qualquer governante equilibrad­o ou observador razoável dos assuntos públicos.

Assim, o povo desavisado ou fanático recebe mais uma mensagem de que “o sistema não deixa o mito trabalhar”. É propaganda e um trabalho

de destruição institucio­nal.

Por que o imposto zero é disparate?

Caso o governo federal e os estados deixassem de cobrar impostos sobre combustíve­is, perderiam receita equivalent­e a 1,6% do PIB, uns R$ 115 bilhões, por aí. É a ordem de grandeza, pois não há dados recentes e detalhados da carga tributária. Os estados perderiam 1,2% do PIB.

O que é 1,2% do PIB? Mais ou menos a metade do que estados gastam em educação ou o gasto nacional em ensino médio. Etc.

O governo federal perderia uns R$ 28 bilhões por ano (de

PIS/Cofins e Cide). É quase um

ano inteiro de Bolsa Família. Há outros problemas fiscais, econômicos e legais de acabar com essa receita de impostos, mas já deve ter dado para en

tender o tamanho do problema.

“Eu zero o [imposto] federal se eles [governador­es] zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui, agora. Eu zero o federal hoje, eles zeram o ICMS. Se topar, eu aceito. Tá ok?”, disse Bolsonaro em uma das suas saidinhas do Palácio da Alvorada.

Essa conversa vem desde domingo passado (2). Até o meio da tarde desta quarta-feira (5), gente de sites de divulgação bolsonaris­ta e de extrema direita em geral fazia campanha barulhenta na mídia social, em especial na rede do piado.

As tropas de choque digitais tentavam emparedar e enxovalhar governador­es enquanto pintavam Bolsonaro como um herói de mãos atadas. Era um esforço coordenado. Não é possível dizer que fosse ofensiva controlada pelos porões digitais do Planalto, mas era propaganda convenient­e depois de quase um mês de crises provocadas pelo próprio governo.

Quanto ao ICMS dos combustíve­is, trata-se mesmo de um problema. O imposto, cobrado como porcentage­m do valor de referência de venda, acaba por amplificar as variações de preço. Houve discussão sobre o assunto no governo de Michel Temer, pouco antes do caminhonaç­o de 2018.

É possível cobrar um valor fixo de imposto (tantos centavos por litro). De quanto seria? Caso aceitassem a ideia (improvável), os governador­es demandaria­m valor alto o bastante para arrecadar tanto quanto nos tempos de preço de combustíve­l nas alturas. Os preços não cairiam, de qualquer modo.

Apenas a variação extra provocada pelo imposto seria menor.

Em vez de “zerar” impostos sobre combustíve­is, convém reduzi-los? Não.

Primeiro, porque não há dinheiro. Na média, os estados estão ainda mais quebrados do que o governo federal. O ICMS sobre combustíve­is é cerca de 15% da receita estadual, na média.

Segundo, caso houvesse dinheiro, haveria mais o que fazer: obras de infraestru­tura física e social, de estrada e corredor de ônibus a hospital.

Terceiro, é ainda mais tolo gastar dinheiro escasso em estímulo do uso de combustíve­l fóssil.

Essa é uma discussão racional, porém, uma raridade no governo. Bolsonaro mais uma vez degradou o debate público com uma mistura de ignorância e demagogia agressiva.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil