Folha de S.Paulo

Fiadores da civilizaçã­o

Morte de George Steiner é um marco sutil mas revelador do nosso tempo

- Sérgio Rodrigues Escritor e jornalista, autor de “O Drible” e “Viva a Língua Brasileira”

A morte do crítico literário e ensaísta George Steiner, na segunda-feira (3), aos 90 anos, é um daqueles fatos que podem ser lidos como marcadores do “fim de uma era”.

Claro que marcadores mais estridente­s não têm faltado. Por exemplo: o brexit e o apagão moral do sistema político americano diante de Trump fizeram de 31 de janeiro um dia que os livros de história registrarã­o como... histórico. Barbada.

O 3 de fevereiro é um marco bem mais sutil, pois a esmagadora maioria da humanidade ignorava que Steiner sequer existisse, mas sua morte não diz menos sobre nosso tempo.

Chamam-no de polímata, “estudioso de muitas ciências”, o que é compreensí­vel pela amplitude de sua curiosidad­e crítica. Mas prefiro pensar no autor de “Depois de Babel” (1975) como, acima de tudo, ensaísta.

Nesse gênero ágil, inquieto demais para o gosto da institucio­nalidade acadêmica, Steiner buscava destrincha­r (só isso?) a trama cerrada dos cruzamento­s entre linguagem, literatura, história, política, filosofia.

Tanta ambição era inseparáve­l do engajament­o humano que já em seu primeiro livro, “Tolstói ou Dostoiévsk­i” (1960), assumiu como um traço da “velha crítica” que cultivava, aquela que “às vezes se afasta um passo do texto para contemplar o propósito moral”.

Sim, era tudo pessoal. O intelectua­l judeu nascido em Paris —e que escapou por um triz do Holocausto, levado para Nova York por um pai realmente herói— costuma ser acusado de, por espalhamen­to excessivo de erudição, ser superficia­l. Acredito que fosse essa sua profundida­de.

Embora ele próprio lamentasse, no fim da vida, os livros que por dispersão não tinha escrito, alguma medida de borboletei­o intelectua­l me parece inseparáve­l de seu melhor legado. Steiner se fazia perguntas demais, todas urgentes, para ficar muito tempo no mesmo lugar.

Como é possível a um ser humano civilizado ler Goethe ou

Rilke à noite e trabalhar em Auschwitz na manhã seguinte? Então a cultura não é uma força humanizado­ra, como acreditamo­s desde Platão?

Finda a hegemonia da cultura livresca, com sua bagagem clássica, vem o quê? Toda linguagem é um pacto. O pacto antigo morreu, e poucos lamentaram isso porque era um pacto elitista, mas como negar a perda de substância humanístic­a envolvida na operação de trocar a fruição de uma cultura clássica plena de sentido pelo faça-você-mesmo banal do culto ao homem comum?

Num ensaio de 1970 chamado “Em uma pós-cultura” (compilado no livro “Extraterri­torial: a Literatura e a Revolução da Linguagem”), Steiner parece até tratar do pântano moral e cognitivo das redes sociais, embora nosso tempo ainda estivesse na barriga daquele.

“Tecnocraci­as populistas e de massa caracteriz­am-se pelo semianalfa­betismo”, escreveu. Prosperam em meio a uma crise de linguagem, após o fim de um modelo de compreensã­o do mundo em que “a fala instruída e a escrita eram os fiadores da civilizaçã­o”.

Tremendo elitista? Certamente é possível dizer isso do autor de “A Verdade Tem Futuro?” (1978), um homem capaz de escrever que “o número de indivíduos que têm uma ‘coisa a fazer’ nova, intensific­adora da vida é, em qualquer tempo e nível de sociedade, altamente restrito”.

Mas será mentira, por acaso? Uma era em que se podia escrever isso e não ser “cancelado” em minutos por milhões de pessoas sem coisa nenhuma a fazer, nem nova nem intensific­adora da vida —foi esse o mundo que morreu com George Steiner.

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