Folha de S.Paulo

Tá rindo de quê?

- Neusa Barbosa

Nos Estados Unidos, a revista The New Yorker disse que a proposta do filme “é um tiro no próprio pé”, enquanto a crítica Gabriella Geisinger, do Digital Spy, diz que, como neta de judeus, se sentiu “doente” já nos primeiros minutos.

A preocupaçã­o é justificad­a. Apesar de a mensagem de amor e inclusão de “Jojo Rabbit” ser bem clara para quem for ao cinema, e de já ter sido usada por comediante­s como Charles Chaplin (em “O Grande Ditador”) e Mel Brooks (em “Primavera para Hitler”), todas as semanas pipocam casos de exaltação ao nazismo, xenofobia e preconceit­o racial em diversos países do mundo —inclusive no Brasil. Waititi não está alheio a isso.

“É triste precisar fazer esse filme para lembrar de como Hitler era insano”, diz o diretor.

“Oitenta anos se passaram desde o início da Segunda Guerra e permitimos que fascistas e racistas falem o que quiserem e organizem marchas. Acredito que é um momento bom para o filme existir. Precisamos lembrar o tempo todo que não podemos deixar essa merda acontecer novamente.”

Jojo Rabbit *****

EUA/Nova Zelândia/República Tcheca, 2019. Direção: Taika Waititi. Com: Roman Griffin Davis, Thomasin McKenzie e Scarlett Johansson. 14 anos. Estreia nesta quinta (6)

Desconstru­ir o horror do nazismo por meio da comédia não é novidade. Desde “O Grande Ditador”, de Charles Chaplin, passando pelo pouco conhecido mas ótimo “Trem da Vida”, do romeno Radu Mihaileanu, e o inevitável oscarizado “A Vida É Bela”, de Roberto Benigni, alguns diretores se aventuram, de tempos em tempos, por este terreno perigoso. O mais recente deles é o neozelandê­s Taika Waititi, com seu “Jojo Rabbit”.

Optando por um tom de fábula que oscila entre cômica e comovente, além de ser estrelado por uma criança, Roman Griffin Davis, o filme acertou em cheio na receita que leva ao Oscar —conquistou seis indicações, como melhor filme, atriz coadjuvant­e, roteiro adaptado, figurino, montagem e direção de arte— e acaba de abocanhar o Bafta de melhor roteiro adaptado (a partir do livro “O Céu que nos Oprime”, de Christine Leunens).

Com raízes judaicas por parte de mãe, Waititi reserva para si mesmo o papel de Adolf Hitler, aqui numa encarnação peculiar, como o amigo imaginário do menino Jojo, um pequeno nazista em formação.

O pai do garoto desaparece­u na Segunda Guerra e a mãe, Rosie (Scarlett Johansson), passa muito tempo fora de casa, numa agenda secreta. Jojo divide seu tempo entre um treinament­o da Juventude Hitlerista e conversas com este amigo, uma amalucada versão da masculinid­ade tóxica exacerbada do Führer.

Ridiculari­zando Hitler e outros oficiais nazistas —como o impagável capitão Klenzendor­f (Sam Rockwell), que parece saído de um filme de Wes Anderson—, o que Waititi parece ter em vista é desmontar a onipotênci­a que fascistas em geral projetam para si.

Ao mesmo tempo, empoderam-se figuras femininas dissidente­s, como Rosie e a adolescent­e judia Elsa (Thomasin McKenzie), que ela esconde no sótão da própria casa.

Ao afrontar a doutrinaçã­o de Jojo, o filme sinaliza a crença de que todo processo de lavagem cerebral pode ser enfrentado e mesmo revertido. Pesquisand­o sobre os judeus para um suposto livro, o que o menino descobre, na verdade, são os absurdos que seus inimigos propagam sobre eles.

“Jojo Rabbit” assume, assim, uma inegável intenção didática, mirando direto no coração do público, sem se importar com os reparos dos críticos quanto à sua relativa facillitaç­ão dramatúrgi­ca. Uma postura que não deixa de fazer algum sentido numa época como a atual, em que, como na do filme, os discursos racionais passam por dificuldad­es em sua capacidade de convencer.

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