‘Aves de Rapina’ faz viagem ao íntimo da anti-heroína Arlequina
los angeles Margot Robbie anda de um lado para o outro nos bastidores do que parece ser um parque de diversões psicodélico e em ruínas. Vestida e maquiada como a personagem Arlequina, a atriz apoia um martelo no ombro direito e pendura seus patins no esquerdo. “Vamos nessa”, grita ela de maneira animada.
Logo o grupo formado por Mary Elizabeth Winstead (Caçadora), Rosie Perez (a policial ReneeMontoya)eJurneeSmollett-Bell (Canário Negro) se reúne junto a uma escotilha que leva a um túnel colorido. A diretora Cathy Yan (“Dead Pigs”) grita “ação!” e as quatro assumem a coreografia da cena.
“Aqui, me ajudem”, grita a Arlequina de Robbie. Elas abrem a saída enquanto vários homens de preto começam a descer em cordas, disparando suas armas. A Caçadora de Winstead segura uma granada e fala para a ex-namorada do Coringa: “Você primeiro”. Enquanto a Arlequina escorrega em segurança, a anti-heroína mascarada lança uma granada. Os capangas são jogados para todos os lados. E... “Corta!”.
“Você veio num ótimo dia”, aproxima-se da reportagem umasorridenteMargotRobbie, assumindo a função de portavoz e produtora de “Aves de Rapina”,
filme baseado nos quadrinhos da DC que estreia nesta quinta-feira (6). “Temos pirotecnia, efeitos especiais funcionando, dublês em ação e, é claro, toda a turma junta. Esse é o momento que nos leva a umasequênciadeaçãoinsana.”
A ideia do longa surgiu em 2015, durante as filmagens de “Esquadrão Suicida”, no qual a Arlequina rouba a cena como namorada psicopata do vilão Coringa (Jared Leto). Robbie não conseguia entender como os filmes de quadrinhos não representavam a tendência das mulheres em andarem juntas. “Passo a vida perto das minhas amigas, mas raramente vejo isso nas telas. Então, apresentei o projeto à Warner: um filme de gangue de garotas e com censura mais alta.”
Com o subtítulo “Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa”, a produção é uma espécie de sequência isolada de “Esquadrão Suicida”, mas os produtores envolvidos não querem ter muita relação com o longa de David Ayer, que rendeu mais de US$ 700 milhões (cerca de R$ 2,9 bilhões), mas foi destruído pela crítica. “Nosso filme não é uma continuação. Não estão conectados”, diz a produtora Sue Kroll.
Quando a reportagem, convidada a acompanhar as filmagens nos estúdios Warner, pergunta se deve fingir que “Esquadrão Suicida” nunca existiu, Kroll se contradiz: “Bem, não precisa fazer isso, porque você conheceu Arlequina, que é a personagem mais popular a sair daquele filme. É apenas... uma história completamente original”.
A separação entre Arlequina e o Coringa já é explosivamente exibida nos primeiros minutos do divertido “Aves de Rapina”. Sem a proteção do antigo namorado e procurando se reencontrar, Arlequina vira alvo dos criminosos de Gotham, principalmente Máscara Negra (Ewan McGregor), que atua com o assassino em série Victor Zsasz (Chris Messina).
Arlequina precisa capturar a ladra adolescente Cassandra (Ella Jay Basco), que toma posse de um diamante, e termina cruzandoocaminhodasoutras anti-heroínas do filme. “É uma viagem ao íntimo da personagem. Será que ela é realmente maluca? Como ela reage a um rompimento? Como decora o apartamento?”, lista Robbie.
Apesar de as mulheres não concordarem em tudo, elas notam que precisam umas das outras para sobreviverem numa cidade violenta. “Temos um grupo bem eclético. Todas incorporam sua feminilidade de maneira diferente”, explica a atriz. “O importante é refletir os aspectos mais variados do poder feminino na tela.”
Ao mesmo tempo, a protagonista e produtora sabe que precisa atender aos fãs dos quadrinhos —ainda mais depois do sucesso de “Coringa”, sem relação com esse projeto.
Por isso, Robbie destacou para a roteirista Christina Hodson gibis que a marcaram. “Embora não fique claro para o público geral, os fãs mais hardcore perceberão algumas imagens e referências”, diz a atriz, que cita “O Profissional” e “O Quinto Elemento”.
AproduçãodequaseUS$100 milhões (R$ 424 milhões) pode ser um novo marco para a DC nos cinemas: violenta, mas divertida. “Queríamos que as pessoas vissem a vida sob o ponto de vista da Arlequina. É um mundo fantástico, brilhante e turbinado”, diz a atriz pouco antes de voltar para as filmagens. “Claro que ela é uma narradora pouco confiável.”
Lúcia Monteiro
Não basta um filme ter direção de uma mulher e protagonista feminina para ser feminista. Não basta formar um elenco culturalmente diverso para ser expressão das minorias.
Inspirado no universo dos quadrinhos da DC, “Aves de Rapina” é um filme de sedutoras e cativantes super-heroínas. Arlequina (Margot Robbie) é uma psiquiatra que caiu no mundo do crime pelas mãos do companheiro, o Coringa.
Agora que os dois terminaram, todos os seus desafetos a ameaçam. No longa, as mulheres ficam com os personagens mais fortes: são mais inteligentes que os homens. No enredo, os pontos altos são situações resolvidas na chave da sororidade.
Ainda assim, seria possível dizer que o filme desprendese de uma lógica masculina e branca? “É um mundo de homens, mas ele não seria nada sem uma mulher ou uma garota.” Esses versos de James Brown, lindamente cantados por Canário Negro (Jurnee Smollett-Bell), são repetidos três vezes numa cena emblemática de “Aves de Rapina”. Eles sintetizam alguns dos mais importantes —e contraditórios— elementos do filme.
Uma lógica musical guia a montagem, ritmando desde sequências de luta até apresentações de personagens.
Ainda, a música: não há nada de fortuito na escolha dessa canção ou de sua intérprete.
Se a personagem-título tem a pele cor de pó de arroz, como o rosto dos palhaços, há entre suas parceiras uma mulher negra (Canário Negro), uma latina (a detetive Montoya) e uma asiática (Cassandra Cain).
O elenco e a escolha musical fazem parte dos esforços do filme para se sintonizar com a diversidade do mundo contemporâneo, sob o prisma das minorias. Infelizmente, parece muito mais um esforço cosmético do que algo orgânico.
Ainda assim, cabe a pergunta: devem os critérios políticos e culturais prevalecerna avaliação de um filme? Se elegermos parâmetros mais propriamente cinematográficos, “Aves de Rapina” não se sai muito melhor.
É um filme muito bem feito, com ritmo eletrizante e enorme sintonia com seu tempo, sobretudo no humor. A sala cai na gargalhada, por exemplo, quando Arlequina assume publicamente a ruptura com Coringa, ao postar seu status de solteira nas redes sociais. Apesar disso, é previsível, com personagens caricatos e uma estrutura muito pouco original.
Não faltam cenas de perseguição, piadas prontas, exposição do corpo feminino, lutas intermináveis. A ausência, sim, é de uma lógica mais genuinamente feminina e de fato diversa.