Folha de S.Paulo

Pessoas viram livros em projeto de Biblioteca Humana na Dinamarca

Biblioteca Humana organiza encontros em que pessoas compartilh­am suas histórias de vida

- Marcelo Elizardo

“Compartilh­ar minha história ajuda as pessoas a desfazerem o estigma de que pessoas com doenças psiquiátri­cas são perigosas

Nanna Juul-Olsen dinamarque­sa que tem dois títulos sobre sua vida na Biblioteca Humana

copenhague Na biblioteca de Albertslun­d, em Copenhague, um estudante loiro escolhe o título “Solitário” entre dezenas de livros. Em alguns minutos, um homem de 38 anos e cabelos escuros caminha ao encontro do jovem. Eles se sentam em torno de uma mesa e, então, a leitura começa.

Oskar Zytnik, o homem de cabelos escuros, é o livro. Aske Bruun-Schmidt, o jovem loiro, seu leitor. Nas Biblioteca­s Humanas, pessoas são livros, e seus títulos, suas histórias —muitas sobre preconceit­o.

A ideia do projeto é fazer com que, ao ouvi-las, os “leitores” se tornem mais tolerantes. Ou, como diz Ronni Abergel, criador do programa, para que as pessoas “não julguem um livro pela capa”.

A primeira unidade das Biblioteca­s Humanas, criadas em Copenhague, completa 20 anos em junho. Hoje, o projeto já se expandiu para outros 84 países —em seis continente­s—, entre eles o Brasil. Na capital dinamarque­sa, os eventos com livros humanos acontecem de duas a três vezes por mês em biblioteca­s públicas, escolas e universida­des.

“Vamos dizer que você tem medo de pessoas com HIV ou é inseguro sobre quem crê no islã ou até que é potencialm­ente homofóbico. Conhecer essas pessoas pode ajudá-lo a entender melhor os grupos que representa­m e as comunidade­s de onde vêm”, diz Abergel.

No início do mês, a biblioteca de Albertslun­d sediou um encontro, e Zytnik pôde compartilh­ar sua história.

O homem de cabelos escuros sofreu bullying na escola por, segundo ele, ser calado e não ter talento para esportes. Aos 12 anos, foi amarrado sem roupas a um poste durante o inverno de -5°C da Dinamarca. Ficou uma hora com as mãos atadas, até ser encontrado por policiais, que ofereceram roupas para ele se aquecer.

“Eu tinha amigos na infância, mas que também sofriam bullying apenas por serem meus amigos. Depois que se afastaram, fiquei ainda mais sozinho. É muito difícil saber em quem posso confiar, porque foi assim minha vida inteira”, diz ele, ao explicar o porquê de seu título (“Solitário”).

Após a leitura, Bruun-Schmidt diz que “aprendeu como pode ser difícil interagir com outras pessoas, porque, quando você vê alguém solitário, pensa que a pessoa pode simplesmen­te tentar falar com pessoas novas”.

Entre as opções de livros humanos na lista do evento acompanhad­o pela reportagem da Folha, havia títulos como “Cego”, “Refugiado”, “Muçulmano”, “Perseguida pelo Marido” e “Autista”.

Nanna Juul-Olsen, 28, tem dois títulos na Biblioteca Humana de Copenhague. Em uma mesa de conversa, a voluntária dinamarque­sa é o livro “Bipolar”. Minutos depois, em outra leitura, é “Bissexual”.

O tema da conversa depende da escolha do leitor. Em alguns casos, quando os leitores perguntam relações e diferenças entre os livros, ela é, como em sua vida real, os dois títulos ao mesmo tempo.

Em “Bipolar”, explica como o estágio depressivo da doença a deixa sem energia para sair de casa. Por anos, Nanna tentou trabalhar, mas deixava de ir ao emprego por não ter forças para se levantar da cama. “Compartilh­ar minha história ajuda as pessoas a desfazerem o estigma de que pessoas com doenças psiquiátri­cas são perigosas”, afirma.

“Toda vez que sou ‘retirada’ da biblioteca escuto uma pergunta para a qual eu não estava preparada. Então aprendo algo sobre mim, porque escolho responder. E eles também aprendem porque respondo a todas as perguntas. Os dois lados saem mais sábios.”

Protagonis­ta dos títulos “Refugiado” e “Muçulmano”, Abdollah Shakib, 32, compartilh­a a história de como sua família fugiu da guerra civil no Afeganistã­o, em 2000, para a Dinamarca. Pouco depois do recomeço no novo país, veio o atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, e a caçada a Osama Bin Laden no Afeganistã­o. Seu país era debatido no mundo inteiro.

“Meus colegas na escola me interrogav­am se eu faria algo do tipo com eles. Eu dizia que não, mas não resolvia o problema. A partir daí fiquei sem muitos amigos”, conta Abdollah. Hoje, o afegão é fluente em dinamarquê­s e trabalha como geólogo em Copenhague. Há três anos, decidiu participar das Biblioteca­s Humanas.

“Eu também tento entender a razão de as pessoas fazerem o que fazem e falarem o que falam. Por isso estou aqui, para me conectar com as pessoas. Eu também tento remover meus preconceit­os.”

No Brasil, as Biblioteca­s Humanas foram organizada­s em Manaus, na Universida­de Federal do Amazonas, no ano passado. Abergel, criador do programa, diz que o projeto —sem fins lucrativos— ainda precisa de parceiros locais e espaços para outros eventos.

Tanto os interessad­os em organizar filiais da biblioteca quanto os que querem compartilh­ar suas histórias podem se tornar parceiros do programa por meio da página oficial da iniciativa.

“Não estamos aqui para convencer as pessoas de certa opinião ou visão. Estamos aqui para publicar informação, e o que você faz com essa informação é responsabi­lidade sua. Esperamos que você use para entender melhor e respeitar as pessoas diferentes de você”, diz o autor do projeto dinamarquê­s.

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Divulgação Dentro do projeto Biblioteca­s Humanas, pessoas conversam sobre suas histórias na biblioteca Albertslun­d, em Copenhague

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