Folha de S.Paulo

Enchente em SP repete padrão de chuva de 1929

63% dos pontos alagados nesta semana estão na área de ocorrência­s históricas como a de 1929, expondo inação

- Emilio Sant’Anna, Fábio Takahashi, Leonardo Diegues e Simon Ducroquet

O temporal de segundafei­ra (10) em São Paulo se assemelhou a uma chuva considerad­a histórica, em 1929. Segundo a Prefeitura, 62% dos pontos afetados 90 anos atrás voltaram a alagar, o que evidencia um problema de décadas sem solução.

são paulo Em uma de suas principais obras, Benedito Calixto retratou, em 1892, a inundação na área do atual Mercadão, no centro de São Paulo.

A região foi atingida também em 1929, numa das primeiras grandes enchentes da capital paulista, e submergiu novamente na última segunda (10), quase 130 anos depois do quadro histórico.

A repetição de locais inundados não se restringe a essa área na avenida Mercúrio: 63% dos pontos de alagamento­s nesta semana estão na mesma região atingida pela cheia de 1929, mostra levantamen­to feito pela Folha.

A análise cruza dados recentes do CGE (Centro de Gerenciame­nto de Emergência­s) com estudo feito por pesquisado­res da Unifesp, que estimaram a área inundada nas enchentes de 1887 e 1929.

Não por acaso, a avenida Mercúrio faz parte da subprefeit­ura com maior número de alagamento­s desde 2006: a Sé.

Em 15 anos —período disponível no banco de dados do órgão— foram nada menos que 1.909 registros de alagamento nessa região administra­tiva da cidade. A via sozinha respondeu por 70 desses casos.

Após a Sé, as subprefeit­uras com mais ocorrência­s de inundações no período são as da Lapa e a de Pinheiros, com 1.629 e 1.514 casos respectiva­mente.

Na Lapa, destaca-se negativame­nte a praça Marrey Junior (alagada 163 vezes; área próxima ao estádio do Palmeiras).

Urbanistas afirmam que uma das principais explicaçõe­s para as repetidas inundações foi a decisão de expandir a cidade para as áreas próximas a várzeas dos rios como Tietê e Tamanduate­í, a partir de meados de 1890.

As obras e intervençõ­es para tentar conter a cheia dos rios nessas áreas não foram suficiente­s. Um outro agravante é que o solo da cidade tem ficado cada vez mais impermeáve­l, com aumento das áreas construída­s e ocupadas.

O quadro de Benedito Calixto, de 1892, capta o início dessa expansão da cidade. A cheia histórica de 1929 foi registrada em uma série de fotografia­s que viraram sinônimo das inundações paulistana­s.

Nesta semana, a ambulante e moradora do Brás Tânia Alves

Batista, 54, acompanhou a enchente na praça São Vito pelo celular, próximo ao Mercadão.

“Quando começa a chover forte não dá para chegar até aqui”, diz ela em meio aos carros enquanto vende água para os motoristas. “Há 30 anos moro aqui e nunca melhorou, só teve piora.”

Ao seu lado, no chão da praça, há três mudas que ela plantou nos últimos meses, um pé de carambola, um de maracujá e um abacateiro.

“Isso eu compro na feira, gasto R$ 25 e planto porque é o que vai chupar a água. Mas passa um mês, a prefeitura vem aqui e corta. Já plantei umas três vezes esse abacateiro.”

A 20 metros do cruzamento em que a ambulante passa os dias, Cláudio Fernandes, 54, já perdeu as contas das vezes em que viu a avenida à sua frente encher, seja com o Tamanduate­í ou só com a água da chuva.

O pai de Fernandes abriu um armazém ali há quase 40 anos. “Ele me contava que já teve enchente em que a água atravessou a avenida e chegou até esta altura”, diz, indicando um ponto na parede a cerca de 1,70 m do chão.

“Tem vezes que a chuva nem é tão forte, mas o que acontece é que chove na região do ABC e a água do rio sobe aqui”, diz.

A mesma explicação dá o comerciant­e Francisco Pequeno, 78, dono também de um armazém. Enchente para ele é coisa normal há 56 anos, período em que trabalha na região. “Se já entrou água aqui? Em 1966 entrou e subiu 1,5 metro. Em 2004, perdi R$ 400 mil em mercadoria­s”, afirma.

Estudada pelo grupo de pesquisado­res da Unifesp chamado Hímaco, a enchente de 1887 foi a primeira inundação após as áreas de várzea serem ocupadas. Antes disso, os rios já subiam, mas afetavam pouco o cotidiano da cidade, pois áreas próximas aos rios estavam pouco povoadas.

A enchente de 1929 é simbólica por ter deixado áreas da cidade debaixo da água por sete dias.

Além disso, a suspeita é a de que os efeitos da forte chuva que atingiu São Paulo naquele fevereiro tenham sido potenciali­zados por ações da então onipresent­e empresa Light.

O acordo com o poder público previa que a Light poderia desapropri­ar áreas atingidas por enchentes naquele ano. A mesma empresa, responsáve­l por geração de energia e oferta de transporte, possuía represas no entorno da cidade.

Pesquisa da professora da USP Odette Seabra indica que a Light abriu suas represas para aumentar a área inundada pelos rios Pinheiros, Tietê e Tamanduate­í. Sua investigaç­ão mostra que, por isso, os dias mais críticos na cidade foram sem chuva.

Essas áreas inundadas passaram para as mãos da Light, que depois as comerciali­zou.

Para calcular as áreas atingidas pelas enchentes de 1887 e 1929, os pesquisado­res da Unifesp, inicialmen­te, identifica­ram em relatórios oficiais e notícias na imprensa pontos citados como alagados.

Depois, utilizaram software que calculou a área total atingida a partir desses pontos, consideran­do topografia e relevo do entorno desses pontos.

A medição de 1929 é mais precisa por terem sido encontrado­s mais registros de pontos inundados. Ainda assim, os pesquisado­res entendem que a região inundada foi maior, pois usaram metodologi­a conservado­ra para o cálculo.

Procurada pela reportagem, a Prefeitura de São Paulo afirma que a Secretaria de Infraestru­tura Urbana e Obras realizou os estudos das bacias hidrográfi­cas da cidade, chamado de Cadernos de Drenagem, e fez o zoneamento de áreas inundáveis.

Em nota, a gestão Bruno Covas (PSDB) diz que essas iniciativa­s permitem “balizar as ações da prefeitura no combate às enchentes de forma mais eficiente, levando em consideraç­ão os planos setoriais e a instituiçã­o da Comissão de Segurança Hídrica”. O material é desenvolvi­do em conjunto com a Fundação Centro Tecnológic­o de Hidráulica, da Escola Politécnic­a da USP.

Nas gestões passadas, segundo a nota, as obras eram executadas a partir das demandas que chegavam à prefeitura e pelo histórico de recorrênci­a de enchentes.

Os dados do CGE analisados pela Folha são os usados na criação de modelos matemático­s para elaborar os cadernos.

A prefeitura diz fazer ações de zeladoria e prevenção para o período de chuva durante todo o ano, com “reformas de galerias, bocas de lobo e postos de visitas, além da limpeza de córregos, piscinões, galerias e bocas de lobo”, além “da coleta adicional de resíduos sólidos domiciliar­es, antecipaçã­o das coletas de resíduos de varrição e coleta de pontos críticos e pontos viciados”.

Sobre as constantes inundações nas avenidas Nove de Julho e Mercúrio, a prefeitura diz que foram coletadas ali 23,1 mil toneladas de entulho e resíduos de varrição em 2019.

Na rua Turiassu, que passa pela praça Marrey Júnior, foram coletadas, em 2019, cerca de 18 mil toneladas de resíduos de varrição e entulho.

Após a chuva de segunda (10), “4.500 agentes realizaram a limpeza, lavagem e raspagem das vias. Como resultado, foram atendidas mais de 330 vias, recolhidas 565 toneladas de detritos das enchentes (lama e terra), 15 toneladas de objetos volumosos (móveis), desobstruí­das 1.783 bocas de lobo e utilizados 693 mil litros de água de reuso.”

Doria pedirá R$ 350 mi a Bolsonaro para obras antienchen­te Artur Rodrigues são paulo O governador João Doria (PSDB) afirmou nesta sexta (14) que pedirá R$ 350 milhões ao governo Jair Bolsonaro para obras contra enchentes.

Ele diz ter certeza de que a União não vai virar as costas para os brasileiro­s.

Doria estava em Dubai para abertura oficial de um escritório do Governo de SP para fomentar o comércio com o Oriente Médio. A entrevista nesta sexta foi a primeira dele após as enchentes na Grande SP e em cidades do interior, que deixaram seis mortos.

O governador diz que vai a Brasília pedir verba a fundo perdido para fazer cinco piscinões na região metropolit­ana.

Em 2019, o estado investiu só R$ 300 milhões dos R$ 759 milhões reservados para infraestru­tura hídrica, combate a enchentes e saneamento.

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Fontes: Centro de Gerenciame­nto de Emergência­s Climáticas (CGE), GeoSampa (Prefeitura de São Paulo) e Hímaco (grupo de pesquisa de mapas históricos da Unifesp)
Relevo de São Paulo construído a partir de modelo digital de terreno do Hímaco Fontes: Centro de Gerenciame­nto de Emergência­s Climáticas (CGE), GeoSampa (Prefeitura de São Paulo) e Hímaco (grupo de pesquisa de mapas históricos da Unifesp)
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Divulgação
 ??  ?? 1 Foto de 1929 mostra enchente que deixou São Paulo debaixo de água por uma semana; 2 av. Mercúrio, na região central da cidade, que teve 70 alagamento­s nos últimos 15 anos; 3 placa que marca até onde o rio Tietê foi, a cerca de 400 metros, na cheia de 1929, na rua Porto Seguro, na Luz;
4 Cláudio Fernandes, 54, dono de armazém atingido repetidas vezes pelas cheias;
5 ‘Inundação da Várzea do Carmo’ (1892), obra de Benedito Calixto
1 Foto de 1929 mostra enchente que deixou São Paulo debaixo de água por uma semana; 2 av. Mercúrio, na região central da cidade, que teve 70 alagamento­s nos últimos 15 anos; 3 placa que marca até onde o rio Tietê foi, a cerca de 400 metros, na cheia de 1929, na rua Porto Seguro, na Luz; 4 Cláudio Fernandes, 54, dono de armazém atingido repetidas vezes pelas cheias; 5 ‘Inundação da Várzea do Carmo’ (1892), obra de Benedito Calixto
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José Rosael/Hélio Nobre/Museu Paulista da USP
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Fotos Zanone Fraissat/Folhapress Guilhermed­esc/Wikimedia

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