Folha de S.Paulo

Da lavra de Bolsonaro

Além da Carta, razões pragmática­s se chocam com projeto acerca de mineração em terras indígenas

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Muito tempo, tinta e saliva ainda serão despendido­s na discussão do projeto de lei enviado pelo presidente Jair Bolso na roa o Congresso para regulament­ara mineração em terras indígenas. O debate, no entanto, pode se mostrar ocioso, uma vez que o texto se choca com dispositiv­os da Constituiç­ão.

Se a regulação da atividade minerária em tais áreas não se efetivou ainda, foi por boas razões. Em especial na modalidade predatória do garimpo, ela tem alto potencial disruptivo para os recursos ambientais necessário­s ao bem-estar e à reprodução física e cultural dos povos indígenas —que a Carta de 1988, no artigo 231, manda proteger.

Verdade que o texto constituci­onal não veda a mineração nessas terras, ainda que lhe dê caráter excepciona­l ao exigir que haja autorizaçã­o do Congresso, oitiva das comunidade­s afetadas e sua participaç­ão nos resultados da lavra. Mas, em sua ofensiva, o Planalto avança o sinal vermelho em pelo menos dois entroncame­ntos.

O primeiro diz respeito à determinaç­ão de ouvir os indígenas. O projeto presidenci­al lhes nega o direito de veto, no caso de exploração mineral por empresas comerciais, aproveitam­ento hidrelétri­co e extração de hidrocarbo­netos.

Além de destoar da intenção do constituin­te, a provisão conflita com o consentime­nto livre e informado previsto na Convenção 169 da Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho, ratificada pelo Brasil.

No segundo atentado constituci­onal, o projeto só reconhece aos índios, como se fora grande concessão, o direito de vetar exploração por garimpeiro­s. Evidencia-se aqui o intuito de ludibriar, pois a mesma Carta veda essa atividade em terras indígenas (artigos 231 e 174).

Em bom português, Bolsonaro lhes concede a prerrogati­va de rejeitar o que já está proibido fazer.

Não são só a letra e o espírito da Lei Maior que se levantam contra o projeto mas também razões pragmática­s. Pela lógica, grandes empresas dificilmen­te vão se animar a investir em projetos de exploração contra a vontade de seus ocupantes, por temor de danos à imagem e da reação dos afetados.

Parece plausível que a proposta acabe esquecida no Congresso, como tantas outras iniciativa­s do atual governo. Ainda assim, resta o risco de que garimpeiro­s ilegais a tomem como senha para intensific­ar suas investidas, devastador­as para a saúde e a integridad­e sociocultu­ral das aldeias —um bem maior que a Constituiç­ão consagra.

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