Folha de S.Paulo

Não Para selar a catástrofe

Não passa de ‘ajuda’ econômica em troca de soberania mutilada

- Arturo Hartmann Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacio­nais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e ex-pesquisado­r visitante no Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos na Universida­de de Exeter (Reino Unido)

Donald Trump não quer mudar radicalmen­te a realidade nos território­s palestinos com o plano articulado por seu representa­nte (e genro) Jared Kushner. Afinal, as sugestões para temas centrais do embate, como a eliminação do controle palestino sobre Jerusalém Oriental, a anexação do vale do Jordão a Israel e o impediment­o do retorno de palestinos no refúgio a seus lugares de origem já têm sido implementa­das por Israel à revelia da lei internacio­nal. As duas primeiras, desde a ocupação de Cisjordâni­a e Gaza, em 1967. A última, desde 1948, como parte dos processos que levaram à criação do Estado judeu em parte da Palestina.

A oferta de Trump é, na verdade, um pacote de “ajuda” econômica de cerca de US$ 27 bilhões, montante a ser coletado com investidor­es e doadores internacio­nais, em troca do aceite de uma soberania mutilada —a “visão realista” como recompensa ao consentime­nto à violência da conquista israelense.

Jerusalém teria suas fronteiras definidas pelo muro levantado desde 2002 sob a alegação israelense de “razões de segurança”, mas que empurra a “Jerusalém palestina” aos subúrbios de Kfar’ Akab, ao norte, e Abu Dis, a leste. A sugestão Trump-Kushner vindica aqueles que viam na barreira um instrument­o de anexação do território.

O plano também premia Israel com a soberania sobre o vale do Jordão, extensão de terras agrícolas que suas forças de ocupação já controlam. O Banco Mundial apontava em 2016 que “restrições de movimento e acesso” a essa região custavam ao PIB palestino cerca de US$ 3,5 bilhões por ano.

Como plano de paz, portanto, a proposta inviabiliz­ase por princípio ao tentar extrair a aquiescênc­ia dos nativos para que nada mude na expropriaç­ão de terras e controle de população. Mesmo a liderança palestina, sujeita aos termos de Oslo, recusou as sugestões. Já pedir aos palestinos que renunciem a direitos e conexão com a terra que sustenta sua coesão social parece ambicioso demais.

O que Trump quis de fato modificar envolve o xadrez regional para avançar sobre o Irã, que se fortalece com a normalizaç­ão das relações de Israel com governos árabes. Para isso, o fato político palestino precisa ser removido. Kushner formulou então a seção 21, pela qual, definido o fim do conflito, acabariam também “todas as reivindica­ções entre as partes”, tudo a ser lavrado em novas resoluções da ONU.

Sob esse novo “contrato”, autoridade­s palestinas não poderiam processar Israel, EUA ou qualquer um de seus cidadãos em cortes internacio­nais. Conclusões da ONU, como as vistas no relatório de 2009 sobre o conflito em Gaza, de que políticas israelense­s resultam em violações da lei internacio­nal, ou as informaçõe­s do Banco de Dados de Empresas nos Assentamen­tos, lançado nesta semana, deixam de ser constrangi­mentos para o governo israelense.

Resta saber se governos envolvidos na sustentaçã­o de Oslo, nomeadamen­te europeus, compartilh­am sobre a necessidad­e de destruir o horizonte político palestino e o conjunto de direitos associado a ele. A alguns governos árabes, como o saudita, de quem o plano depende financeira­mente, e egípcio, politicame­nte, cabe pesar se sepultar o Estado palestino não lhes causam problemas em casa no caso de parte de suas populações não serem convencida­s da ideia de entregar um passe livre a Israel. Trump precisa, também, que um conjunto de governos autoritári­os, simpáticos à produção de violência israelense, permaneça de pé. A começar pelo dele.

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