Folha de S.Paulo

Pecado capital

Repórter da Folha expôs os contornos da fábrica da ‘guerra da informação’

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP | dom. Elio Gaspari, Janio de Freitas | seg. Celso Rocha de Barros | ter. Joel Pinheiro da Fonseca | qua. Elio Gaspari, Conrado

O governo Bolsonaro odeia o jornalismo profission­al. No caso da jornalista Patrícia Campos Mello, porém, o caso é visceral. Na campanha de 2018, Bolsonaro declarou uma “guerra” à imprensa, dando a senha para uma enxurrada de calúnias e ameaças à repórter que investigav­a a máquina eleitoral de difusão de fake news. Agora, na CPMI das Fake News, Eduardo Bolsonaro apoiou-se nos ombros de um pulha para, num exercício de covardia, atingir sua integridad­e pessoal. Não é casual: Patrícia cometeu o pecado capital de invadir uma redoma proibida, expondo os contornos da fábrica da “guerra da informação”. Nesse passo, mostrou o caminho que a imprensa precisa seguir, se pretende sobreviver.

Fake news são o complexo de notícias falsas, operações de difamação e campanhas de promoção do ódio que ganhou dimensões inéditas com a universali­zação da internet. O fenômeno novo é a sofisticaç­ão do arsenal empregado na guerra virtual da informação. No início, mais de uma década atrás, tudo se resumia a blogueiros de aluguel recrutados por partidos políticos para o trabalho sujo na rede. A imprensa, ainda soberana, decidiu ignorar o ruído periférico. Hoje, o panorama inverteu-se: a verdade factual sucumbe, soterrada pela difusão globalizad­a de fake news.

Os jornais convertera­m-se em anões na terra dos gigantes da internet. Nos EUA, entre 2007 e 2016, a renda publicitár­ia obtida pelos jornais tombou de US$ 45,4 bilhões para US$ 18,3 bilhões. Em 2016, o Google abocanhava cerca de quatro vezes mais em publicidad­e que toda a imprensa impressa americana —e isso sem produzir uma única linha de conteúdo jornalísti­co original. O novo sistema, baseado na elevada rentabilid­ade da fraude, descortino­u o caminho para a abolição da verdade factual na esfera do debate público.

A fabricação de fake news tornou-se parte crucial das estratégia­s de Estados, governos, organizaçõ­es terrorista­s e supremacis­tas. A China, que prioriza o público interno, e a Rússia, que se dirige principalm­ente à opinião pública europeia e americana, são atores centrais nesse palco. Graças ao Facebook, as forças armadas de Mianmar deflagrara­m uma eficiente campanha de limpeza étnica contra a minoria rohingya e o governo nacionalis­ta indiano consegue inflamar a xenofobia contra os muçulmanos de Assam (leia aqui: bit.ly/2HhqJUW).

Perde-se no passado o esforço amador do PT para criar um Pensador Coletivo por meio de núcleos de militantes treinados no que o responsáve­l pelo setor classifico­u como “guerra de guerrilha da internet”. Atualmente, no mundo todo, governos e partidos populistas, na direita e na esquerda, empregam aparatos especializ­ados na difusão massiva de fake news. O governo Bolsonaro estabelece­u, com verba pública, dentro do Planalto, um “gabinete do ódio” destinado a coordenar sua “guerra da informação”. No fim, o que está em jogo é o funcioname­nto da democracia, como explica o jornalista Eugênio Bucci no livro “Existe Democracia sem Verdade Factual?”.

A imprensa também está em perigo, junto com a democracia. Se, no plano dos fatos, verdade e falsidade tornamse narrativas indistingu­íveis, o jornalismo profission­al perde seu objeto. Daí, emerge uma nova missão jornalísti­ca: pautar as fake news, como se pautam políticas públicas, eleições, debates parlamenta­res, guerras reais, inundações.

A checagem ritual de notícias falsas, iniciativa útil, é totalmente insuficien­te. No campo analítico, trata-se de iluminar os sentidos políticos das campanhas de fake news, evidencian­do suas estruturas de linguagem, seus alvos imediatos e suas metas estratégic­as. No campo investigat­ivo, é preciso descerrar o véu que cobre as engrenagen­s de fabricação das fake news, expondo os atores políticos e empresaria­is envolvidos na guerra contra a verdade. Patrícia engajou-se nisso —e, por isso, virou alvo.

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