Folha de S.Paulo

Mulheres negras ocupam cargos bons no meu país, diz guianense

- Flávia Mantovani

são paulo Este depoimento faz parte do especial multimídia Imigrantes de SP, que traz o ponto de vista de estrangeir­os que vivem na cidade. Novas histórias continuarã­o sendo publicadas periodicam­ente.

Quando falo que sou da Guiana, pensam na Guiana Francesa. Tem também quem pensa em Gana, na África. A Guiana inglesa é menos conhecida.

Deixei meu país por causa de amor. Conheci meu marido pela internet, em 2001. Ele é do Congo, em 2009 saiu de lá e veio me encontrar, mas não conseguiu entrar na Guiana. Ficou morando em Manaus e, dois anos depois, eu vim.

Na fronteira, o chefe da polícia olhou nosso passaporte e falou: “Não sei por que esses vagabundos vêm pro nosso país”. Minha vontade era responder: “Você não me conhece, está me desrespeit­ando”. Mas não falei nada, sou estrangeir­a e ele podia não me deixar entrar. E também porque eu não conhecia exatamente o significad­o de “vagabundo”. Mas pela atitude e pela voz dele, sabia que era coisa ruim.

O começo aqui não foi fácil. Tive que aprender um novo idioma, a cultura do meu marido e a do Brasil ao mesmo tempo. Quase entrei em depressão, ficava muito em casa. Comecei a trabalhar aos 16 anos, fui mãe sozinha aos 18, criei meu filho com três trabalhos ao mesmo tempo. Estava acostumada a fazer muitas coisas. De repente me vi em um país novo, sem conhecer ninguém, sem fazer nada.

Mesmo com medo, saí da minha zona de conforto e fiz cursos de artesanato. Aprendi a fazer bonecas brancas, como todo mundo faz. Um dia quis presentear a filha de uma amiga, que é nigeriana, mas não achei bonecas negras em nenhuma loja de Manaus. Voltei pra casa, criei uma e vesti com tecidos africanos. Foi um sucesso. Pensei: vou fazer bonecas que me representa­m.

Criança de outras etnicidade­s podem ter bonecas pretas. Precisam. É uma forma de ensinar sobre o outro, de combater o preconceit­o. Odeio quando fazem bonecas pretas com a boca muito grande, bem vermelha, usando tecido bem preto. Tem pessoas com essa pele? Tem. Mas temos vários tons. Nas minhas bonecas, gosto de usar vários tons.

Na Guiana, é normal uma mulher negra ser chefe da polícia, do Judiciário. Aqui sempre ouço que as mulheres negras estão na luta. Participei de um projeto para capacitar mulheres refugiadas e as únicas vagas eram de faxineira, de caixa de loja. Isso me abriu a mente para entender o que as negras brasileira­s passam.

Nossa cultura é mais reservada, da Inglaterra. A primeira vez que vi uma mulher grávida no trem com a barriga de fora, eu fiquei chocada. Para nós, é uma coisa que você só mostra pro seu marido.

Gosto de São Paulo porque tem muitos parques. No da Água Branca, tem até galinhas, peixes. Fiquei surpresa, no meu país as pessoas teriam levado os bichos para cozinhar. Aqui as galinhas andam soltas.

Estou feliz. Quero crescer um pouco mais com meu trabalho, mas agradeço a todo mundo que me ajudou pra chegar até aqui. Em cada ideia que eu tive, sempre achei um brasileiro pra me ajudar.

A artesã guianense Renée Ross Loudja, 48, vive no Brasil desde 2011

LEIA O ESPECIAL SOBRE IMIGRANTES DE SÃO PAULO folha.com/imigrantes­desp

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Bruno Santos/ Folhapress A artesã Renée Ross Loudja, 48, é da Guiana e está no Brasil desde 2011

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