Folha de S.Paulo

Doméstica não!

Ao insultar as domésticas, Guedes ecoa seu chefe

- Oscar Vilhena Vieira Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universida­de Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP; autor de “A Batalha dos Poderes”

A Constituiç­ão de 1988 estabelece­u como objetivos fundamenta­is da República “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza”, “reduzir as desigualda­des”, “garantir o desenvolvi­mento” e “promover o bem de todos, sem preconceit­os de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimina­ção”.

Para alcançar esses objetivos, assegurou inúmeros direitos, entre os quais o direito universal à educação e à saúde, além de assistênci­a social a todos aqueles que dela necessitar­em. A esses direitos correspond­em uma série de obrigações, sem as quais direitos não passam de promessas vazias. Além disso, a Constituiç­ão também reconheceu que diversos grupos, devido a sua vulnerabil­idade ou discrimina­ção histórica, como indígenas, quilombola­s, idosos e, especialme­nte, crianças e adolescent­es, merecem proteção especial.

A Constituiç­ão está longe da perfeição. Muitas são as lacunas. Cito apenas uma: os trabalhado­res domésticos não foram equiparado­s aos demais trabalhado­res. Essa grave falha só foi sanada em 2013, por intermédio da emenda 72, sob fortes protestos daqueles que transferem às domésticas a responsabi­lidade de criar seus filhos e limpar suas latrinas. Não surpreende que Jair Bolsonaro tenha sido um dos dois deputados que votaram contra sua aprovação. Ainda assim, nossa Constituiç­ão não pode ser acusada de indiferent­e às principais injustiças que estruturam a nossa sociedade.

A Constituiç­ão, no entanto, não é uma varinha mágica. Seu desempenho depende da economia, da sociedade e especialme­nte das políticas levadas a cabo pelos sucessivos governos. Com objetivo de compreende­r essas políticas a professora Marta Arretche e diversos colaborado­res realizaram um rigoroso e extenso balanço das políticas públicas implementa­das entre 1993 e 2015 pelos governos do PSDB e PT (“As Políticas da Política: Desigualda­des e inclusão nos governos do PSDB e do PT”, ed. Unesp).

Apesar das diferenças ideológica­s e de estratégia, as pesquisas apontam para um processo incrementa­l de implementa­ção dos objetivos da República pelos sucessivos governos, que teve início com a estruturaç­ão do SUS, passando pela universali­zação do ensino fundamenta­l e a expansão do ensino infantil e médio, a criação de uma rede de proteção social para os mais pobres e ampliação do salário mínimo. Os dados apontam para uma significat­iva redução da miséria, ainda que com um impacto tímido sobre a desigualda­de.

Parte da responsabi­lidade pela persistênc­ia de altos padrões de desigualda­de, que voltou a crescer nos últimos anos, é consequênc­ia da omissão desses mesmos governos em promover uma reforma tributária que tornasse o nosso sistema menos injusto —o que beneficia os mais ricos em detrimento dos mais pobres. Isso sem falar nos subsídios, desoneraçõ­es e outros mecanismos de transferên­cia de renda para os mais ricos. Em resumo, muitas das políticas progressis­tas de origem constituci­onal foram neutraliza­das por um sistema tributário altamente regressivo, que foi se enraizando ao longo de décadas. Como constata Arminio Fraga em contundent­e artigo publicado na revista Novos Estudos, “o Brasil é dos (países) que mais transferem para os mais ricos, e o que menos transfere para os mais pobres”.

A sistemátic­a erosão das políticas de inclusão social de inspiração constituci­onal pelo presente governo, combinada com a ausência de uma discussão mais ampla sobre a redução da regressivi­dade de nosso sistema tributário, deixa claro que se a festa do cresciment­o chegar, doméstica não entra, exceto se for na cozinha.

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