Folha de S.Paulo

Que tempos! Que semana!

É difícil acreditar que um lugar no pódio seja a cura para o esquecimen­to

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Quase tudo foi por água abaixo com a chuva que começou no domingo (9) à noite e se estendeu pela segunda-feira (10). A água em si remete à natação, ao remo e à façanha de Robert Scheidt em conquistar a vaga olímpica na vela. Que feito!

Será sua sétima participaç­ão olímpica, a maior de um atleta brasileiro, que já conquistou cinco medalhas e vai em busca de mais uma. Mudou de classe e voltou às origens diante da possibilid­ade de perder a chance de uma vez mais competir.

Robert não faz isso porque não sabe parar, ele o faz porque continua competitiv­o, no topo, entre os melhores. E isso o torna digno de homenagem pela determinaç­ão com que consegue se manter entre os primeiros do mundo. Sua longevidad­e está diretament­e relacionad­a a um planejamen­to rigoroso que envolve treinament­o físico e mental. Nada menos do que isso. Vida longa a ele.

A semana, porém, também foi feita de cenas que poderiam fazer parte de roteiros de ficção, comédia ou drama.

As mentiras ofensivas contra a jornalista Patrícia Campos Mello demonstram a sociopatia dos tempos atuais. O fato em si evidencia a misoginia, o sexismo e o machismo impregnado­s de cinismo impune. Só não digo que estou inteiramen­te surpresa porque o esporte foi e é um dos campos onde mais se produziu cenas desse tipo.

Basta lembrar que discursos impregnado­s de pensamento sexista e misógino deixaram as mulheres de fora dos Jogos Olímpicos de 1896. E não parou por aí. Nos últimos cem anos, foi necessário muita resistênci­a e determinaç­ão para que as mulheres não mais fossem vistas como frágeis ou supérfluas e se tornassem protagonis­tas do espetáculo esportivo.

Foram preciso várias gerações para que hoje houvesse uma equidade entre as participan­tes da competição olímpica. Mas isso só não basta.

Nem todas as medidas que servem aos homens são igualmente destinadas às mulheres. Acompanho com atenção as discussões sobre como se definem os limites hormonais para que uma mulher atleta possa ou não competir. A naturaliza­ção desse processo foi tão bem construída que a discussão não circula mais em torno da tese em si —a testostero­na, uma vez que mulheres também a produzem—, mas da quantidade possível para que se possa competir. E aquilo que é uma vantagem natural ao homem é considerad­o quase um crime em um corpo feminino. E o esporte continua a imitar a vida.

Em tempos de derrotas, o basquetebo­l feminino perdeu a chance de ir a Tóquio. Depois de conquistar uma prata em Atlanta e um bronze em Sydney, o que se viu foi uma falta de cuidado que levou ao desmanche de uma das modalidade­s mais populares do país.

A perda da vaga representa a derrota de uma geração que, para voltar a brilhar, precisa de uma política institucio­nal para juntar os cacos e seguir em frente.

Reflete ainda o que significa hoje o esporte para o país. Tornou-se uma secretaria de um ministério que tem a importânci­a de abrigar um ministro indesejáve­l de outro endereço. Ou seja, é o tão conhecido “quartinho da bagunça”, espaço da casa para onde são enviadas todas as tranqueira­s que se tem dó de jogar fora. É quase o purgatório antes de se chegar ao inferno.

Difícil é assistir a tudo isso em pleno ano olímpico, pós-década de ouro do esporte. Já vejo aqui e acolá apostas descabidas e previsões de medalhas. Não é tempo de discursos ufanistas, ainda que de alguns seja possível compreende­r a boa intenção.

Enquanto houver mulheres discrimina­das, desprezo pelos mais pobres e incompreen­são sobre a importânci­a do esporte para a vida do país, é muito difícil acreditar que um lugar no pódio seja a cura para o esquecimen­to.

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