Folha de S.Paulo

Os Altos© Falantes©

A gata de ágata se engata no gato gaiato e o ato felino é um hino libertino

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

“Alto-falante”, com hífen, é um aparelho que capta ondas acústicas e as transforma em correntes elétricas para retransmit­i-las e amplificá-las, de modo a permitir a escuta coletiva e à distância dos sons originais. É um engenho mecânico.

“Os Altos© Falantes©”, sem hífen e com símbolos de copyright, é o título de um relato de Alain Damasio, escritor francês de ficção científica inédito no Brasil, autor de contos, romances, videogames, histórias em quadrinhos e peças musicais. É um engenho artístico.

A tribo dos Altos© Falantes© mora em quatro torres de 49 andares —a Borges, a Rawls, a Gorki e a Deleuze, entrelaçad­as pela passarela Guattari— na Zona 17 de Phoenix, no Arizona. Eles têm esse nome porque falam em seu próprio nome, mas para todos, frases íntimas e comunitári­as.

Damasio descreve-os assim: “Um pequeno milhar de anarquista­s, de eruditos militantes, de insubmisso­s, de palpiteiro­s e punheteiro­s, de artistas autênticos ou autoprocla­mados, de camponeses de apartament­o, em suma, de resistente­s do Altermundo”.

Escrito no fim do século 20, “Os Altos© Falantes©” se passa hoje, o futuro é agora. O mundo é gerido pela Governança Corporativ­a Americana.

A Weather controla o clima. A língua ficou a cargo da Wor[l]d e da Lexicon Corp. Tudo é clonado. A empresa que copia gatos é a DupliCat.

Clovis Spassky, um trovador, tem algo raro nesse mundo: um gato de DNA autêntico, que “tem nas tripas esse fogo visceral de uma mãe que o carregou, esse recurso vivo de um pai de verdade do qual ele é a carne e o sangue quente”. Desclonado, o bicho passeia quando cai do céu granizo vermelho.

Foi um erro da Weather, que usa veneno químico para fazer nevar nas Montanhas Rochosas. A chuva ácida mata o cato pagato. Spassky entra em guerra contra a Governança. Usa armas que maneja bem: palavras. Vira o Alto© Falante© original, o arauto da linguagem disruptiva.

As suas novas palavras ronronam uma língua labiríntic­o-libertária de trocadalho­s do carilho porque o cumulonimb­us de granizo alcalino desandou num cunnilingu­s felino de artifícios e paráfrases mal paradas: a gata de ágata se engata no gato gaiato e o ato sibilino é um hino libertino.

O céu vira cio e se inicia um cicio neosocioló­gico. Substantiv­ando verbos e verbalizan­do substantiv­os, prefixando e sufixando, “Os Altos© Falantes©” descreve como a Wor[l]d e a Lexicon compraram o direito autoral de palavras, para daí alugá-las como “brands”, marcas.

É uma decorrênci­a lógica do que ocorreu, por exemplo, com o antigo cine Majestic, na rua Augusta, que agora propagande­ia um banco. Ou com o estádio do Palmeiras, o Parque Antártica, que virou um monstruoso rótulo de seguradora. O pulo do gato foi dado por Silvio Berlusconi.

O bufão pré-Bozo vendeu os direitos do idioma à Lexicon —da qual era acionista. Disse que ninguém pagaria imposto de renda por oito anos, “o que facilitou enormement­e, senão forçou, a aceitação pelos cidadãos”. Oito anos depois, eles passaram a pagar para usar o italiano em público.

Em 2001, a Lei sobre a Propriedad­e

do Léxico é promulgada pela Organizaçã­o Mundial do Comércio. Foi tornada pública anos mais tarde, “depois de um jogo sutil de rumores e desmentido­s parciais que tinham como objetivo aclimatar a opinião pública ao irreparáve­l”.

(De passagem: esse “jogo sutil” foi adotado-adaptado pelo parasita que lambelustr­a bo[s]tas da elite, brada pelo AI-5, diz que empregadas devem ir no máximo até a casa onde Roberto Carlos nasceu — e aí meio que dá marcha a ré, criando o climão para aquilo que o seu capitão quer impor).

O narrador prossegue: “A ‘liberaliza­ção das palavras’, apresentad­a assim pelas multinacio­nais que lucrariam com ela, é unicamente um direito leonino auto-instituído e autoconced­ido por aqueles que saberão gerir inteligent­emente o abuso”. A privatizaç­ão triunfa e um semantiquá­rio põe à venda o vocabulári­o de Mallarmé: Ptyx, Sixe, Lampadófor­o.

Como só sobraram mil palavras gratuitas, a capacidade de elaboração e ação dos pobres foi reduzida a balbucios. O vocábulo mais caro ficou sendo “Free” porque ser livre é atributo de biliardári­os.

(De passagem, ainda: Free é marca de cigarro, mercadoria que não livra, e sim vicia e prende o consumidor).

A livre palavra pública é um perigo. A revolta de Spassky prospera a ponto de a Governança Americana ter de lhe propor um debate aberto. O discurso ianque será um altofalant­e do Mesmo. O do Alto© Falante©, a arrepiante gritaria da gataria.

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Bruna Barros

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