Folha de S.Paulo

País falha na oferta de acolhiment­o a crianças de abrigo

Contrarian­do estudos e a própria legislação nacional, país falha na oferta de acolhiment­o familiar

- Érica Fraga

Abrigos recebem 96% dos mais de 35 mil menores sob tutela do Estado. O regime de acolhiment­o familiar, em que a criança é cuidada por uma família transitóri­a enquanto aguarda a resolução de seu caso, ainda é pouco difundido no país.

são paulo Quando Maria Vitória chegou na vida de Daniela e Marcos Adauto Ribeiro, em maio de 2019, fazia pouco mais de um ano que o casal havia adotado o irmão dela, Davi.

A professora universitá­ria e o engenheiro civil tinham descoberto que a mãe biológica do menino havia dado à luz e perdido a guarda da menina devido ao vício em drogas, exatamente como acontecera com Davi.

O casal decidiu procurar a Justiça e manifestou intenção de adotar também a menina. O pedido foi aceito e Maria Vitória chegou à casa dos Ribeiro com seis meses, um a mais do que Davi tinha quando se tornou parte da família.

Apesar do vínculo biológico e da idade próxima com a qual foram adotados, as diferenças entre Davi e Vivi chamaram a atenção de Daniela.

“Ele chegou chegando”, brinca a mãe. “Sempre foi muito sorridente, tinha excelente desenvolvi­mento motor e o vínculo com a gente foi muito rápido. A Vivi não esboçava sorriso. Não firmava a cabecinha, não olhava as mãos, como outros bebês fazem aos seis meses. E a formação do vínculo foi bem mais difícil”.

Além das peculiarid­ades de personalid­ade, Daniela acredita que as diferenças no comportame­nto e no desenvolvi­mento inicial dos filhos se deveram, em larga medida, às formas distintas de acolhiment­o que receberam entre o nascimento e a adoção.

Vivi passou seus primeiros meses de vida em um abrigo, como são chamados hoje os antigos orfanatos. Embora considerad­o prejudicia­l ao desenvolvi­mento infantil, esse é o sistema predominan­te no Brasil, recebendo 96% das mais de 35 mil crianças e adolescent­es sob tutela do Estado.

Davi foi morar com uma família acolhedora, regime recomendad­o pela ciência e pela própria legislação brasileira, mas ainda pouco conhecido e implementa­do no país.

Nesse modelo, enquanto aguarda solução da Justiça para seu caso, a criança é cuidada por uma família transitóri­a, que costuma receber um subsídio, não pode estar na fila de adoção e precisa ser aprovada pelas autoridade­s.

“O trabalho que os abrigos fazem é louvável, mas a criança é cuidada a cada hora por uma pessoa. Não desenvolve vínculo. Isso era visível na Vivi”, afirma Daniela.

“O Davi estava numa família acolhedora maravilhos­a, se sentia seguro. A transferên­cia desse vínculo deles para a gente foi tranquila”, diz ela.

A demora brasileira em colocar a legislação em prática e permitir que mais crianças tenham o tipo de cuidado recebido por Davi pode transforma­r o país em caso de estudo.

Um grupo de pesquisado­res estrangeir­os pretende fazer em São Paulo uma pesquisa para comparar o desenvolvi­mento de crianças acolhidas em famílias e em abrigos.

O projeto –que ainda depende de algumas aprovações –nasceu de um contato entre a Lumos, fundação criada por J.K. Rowling, autora da série Harry Potter, e Charles Nelson, neurocient­ista da Universida­de Harvard.

Sua proposta é investigar mais profundame­nte a dificuldad­e de formação de vínculos com adultos em abrigos e suas consequênc­ias.

“Estímulos como abraços, colo, ter a mão segurada e ouvir palavras vão moldando o cérebro”, afirma Edson Amaro, médico e professor da USP.

“A criança que recebe poucos estímulos não desenvolve a percepção do afeto e, com o tempo, não reage bem ao meio ambiente”, conclui ele.

O médico também assessora o Instituto Pensi, braço da Fundação José Luiz Egydio Setúbal que está participan­do do desenho do projeto em São Paulo e será responsáve­l por parte de sua execução.

Indícios do que Amaro diz eram apontados por pesquisas desde o início do século 20 e foram confirmado­s por estudos subsequent­es, como um trabalho seminal feito na Romênia por Nelson e seus coautores, o também neurocient­ista Nathan Fox, da Universida­de de Maryland, e o psiquiatra Charles Zeanah, da Universida­de Tulane.

Ao comparar crianças crescidas em abrigos com as cuidadas por famílias acolhedora­s, pesquisado­res descobrira­m que o primeiro grupo teve atrasos no desenvolvi­mento físico e cognitivo e chegou à adolescênc­ia com menos controle emocional e maior dificuldad­e de relacionam­ento.

Apesar das evidências a favor do acolhiment­o familiar, há questões para as quais os cientistas ainda buscam respostas mais precisas.

Uma limitação do estudo romeno é que as crianças tinham uma idade média de 22 meses quando foram escolhidas, aleatoriam­ente, para continuar no abrigo em que já viviam ou migrar da instituiçã­o para o acolhiment­o familiar.

A pesquisa mostrou que as crianças mais novas transferid­as para as famílias tiveram desempenho melhor que as maiores. Mas uma dúvida é: exatamente em que momento certas barreiras ao desenvolvi­mento começam a surgir?

Essa pergunta está ligada ao conceito de período sensível do desenvolvi­mento infantil: “O período sensível é aquele em que o cérebro está com sua máxima receptivid­ade ao ambiente”, afirmou Nelson à Folha, durante uma visita recente dos pesquisado­res americanos a São Paulo.

Mas, segundo o trio de pesquisado­res, mesmo em países como o Brasil –onde a infraestru­tura, a limpeza e a organizaçã­o dos abrigos são bem melhores do que as condições na Romênia após a queda do comunismo– o cérebro infantil é, parcialmen­te, ignorado no acolhiment­o institucio­nal.

“A imagem que tenho dos abrigos que visitei no Brasil é de bebês deitados e um número relativame­nte pequeno de cuidadores por criança”, afirmou Fox. Ainda que a experiênci­a possa compensar a falta estímulos nos períodos sensíveis, a recuperaçã­o se torna mais difícil. “As crianças que foram para o acolhiment­o familiar na Romênia melhoraram em todos os domínios, mas a recuperaçã­o não foi completa”, disse Zeanah.

A conclusão se baseia na comparação dos dois grupos participan­tes do estudo com um terceiro, composto de crianças romenas que sempre viveram com suas famílias.

A busca da neurociênc­ia por mais respostas sobre o desenvolvi­mento infantil motivou a Lumos a procurar Nelson, sugerindo pesquisas sobre o tema. A organizaçã­o, fundada após Rowling se sentir tocada pela foto de um menino em abrigo, advoga pelo fim do acolhiment­o institucio­nal.

O trio de pesquisado­res aceitou a oferta de apoio e passou a buscar países que se encaixasse­m no que queriam investigar. “Quando reunimos estatístic­as, percebemos que o Brasil tinha um problema grande. Não há uma história de acolhiment­o familiar aqui”, diz Nelson.

A lei é explícita desde 2009, quando o Estatuto da Criança e do Adolescent­e (ECA), que completa 20 anos em 2020, foi alterado. A nova redação determinou que “a inclusão da criança ou do adolescent­e em programas de acolhiment­o familiar terá preferênci­a a seu acolhiment­o institucio­nal”.

O texto acrescenta que esse período deve ser transitóri­o, enquanto é aguardada a reintegraç­ão à família biológica ou a adoção.

A legislação também passou a ser mais precisa sobre prazos. A situação da criança precisa ser reavaliada pela Justiça a cada três meses e a solução definitiva deve ocorrer, no máximo, em um ano e meio.

As mudanças foram considerad­as avanços. Porém, passada mais de uma década, apenas 1.343 das 35.797 crianças e adolescent­es sob a guarda do Estado estão em acolhiment­o familiar, segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

O número, inferior a 4% do total, contrasta com países como EUA, Espanha, Austrália, Reino Unido e Irlanda, onde mais de 80% de crianças e adolescent­es separados dos pais são abrigados por famílias.

No município de São Paulo, o quadro é ainda pior. Segundo o CNJ, apenas 7 das 1.170 crianças e adolescent­es sob a guarda do Estado estão em acolhiment­o familiar.

Dados do governo federal mostram que o total de cidades que oferece o serviço passou de 272 em 2017 para 332 em 2018. O número representa 6% dos 5.570 municípios.

“O acolhiment­o familiar deveria ser prioridade, mas ainda é exceção”, diz Lara Naddeo, psicóloga do Instituto Fazendo História. A organizaçã­o –que também apoia o projeto de Charles Nelson– é uma das poucas que realiza o acolhiment­o familiar na capital paulista. Seu trabalho envolve desde o recrutamen­to e o treinament­o das famílias até a interface com a Justiça.

Embora a legislação estabeleça que o poder público estimule o acolhiment­o familiar “por meio de incentivos fiscais e subsídios”, isso nem sempre ocorre. Em São Paulo, só recentemen­te a prefeitura assinou convênios com o Fazendo História e com outras duas organizaçõ­es, o Instituto Pilar e a ABBA.

“Nossa expectativ­a é de que, agora, o acolhiment­o familiar vire política pública e passe a receber investimen­tos”, diz Lara. Até agora, o braço de acolhiment­o familiar do Fazendo História foi financiado por outros serviços prestados pelo instituto.

Segundo Nelson Alda Filho, coordenado­r de proteção especial da Prefeitura, com os convênios a gestão de Bruno Covas (PSDB) pretende fazer com que a lei seja, de fato, implementa­da no município.

Para facilitar o processo, o governo municipal determinou que a primeira infância (de 0 a 6 anos) seja idade prioritári­a para o serviço que, depois, poderá ser expandido.

Pesquisado­r do tema, Alda Filho diz que a resistênci­a da sociedade em “perceber a criança como sujeito de direito” ajuda a explicar a lentidão.

Para a juíza Mônica Gonzaga Arnoni, embora haja, de fato, questões culturais em jogo, o principal empecilho tem sido a ausência de políticas públicas, o que contribui para que o tema seja cercado por desconheci­mento ou tabus.

Mônica conta que, em 2015, quando respondia pela Vara Central da Infância e da Juventude de SP, o Fazendo História sugeriu um piloto de acolhiment­o familiar e ela relutou: “Eu havia acabado de ser mãe e pensei: imagina que vou entregar um bebê para acolhiment­o familiar e, depois, entregá-lo a outra família, de origem ou adotiva”. “Mas estudei o tema e vi que estava equivocada”, diz ela, que, hoje, assessora a Corregedor­ia Geral da Justiça.

Daniela, mãe de Vivi e Davi, diz que sua experiênci­a pessoal também indica isso: “Ficamos amigos da família que acolheu o Davi. Nos falamos e nos vemos com frequência”.

O relato de Daniela é semelhante ao de uma família acolhedora que a Folha visitou. Os empresário­s Renata de Lucca e Ernany Lobo foram assistir a palestra do Instituto Fazendo História ainda sem saber bem do que se tratava, em 2017: “Ouvi que existia um lugar que aceitava voluntário­s que pudessem cuidar da criança enquanto a família dela era cuidada e isso me encantou”, diz Renata.

Logo no primeiro acolhiment­o, Renata e Ernany e seus três filhos, já adultos, receberam em casa irmãos gêmeos de menos de um mês, que estavam em um abrigo.

Segundo a família, os meninos chegaram apáticos: “Eles não choravam, não reivindica­vam nada”, diz Carolina, filha caçula do casal, enquanto brinca com M., bebê que a família acolhe agora.

Os gêmeos foram adotados com seis meses. Renata e Ernany se emocionam quando lembram o momento em que viram uma foto dos meninos com a nova família.

Mas a separação não os fez desistir do acolhiment­o. “Pelo contrário. Sou muito ciente do meu papel. Não é nada para mim, é para ela”, diz a empresária, apontando para a bebê.

Ernany diz que o envolvimen­to no projeto o fez compreende­r melhor o que leva famílias a não poderem criar seus filhos: “A pessoa, às vezes, está na rua, drogada e, muitas vezes, isso é consequênc­ia de um processo que remonta à escravidão e passa de geração em geração, sem ser quebrado”.

A menina que hoje é cuidada pela família será adotada por um parente, primo da mãe biológica, com quem Renata e Ernany também esperam manter contato.

Segundo o juiz Sérgio Luiz Kreuz, que por 20 anos esteve à frente da Vara da Infância de Cascavel (PR), casos como o de Renata e Ernany e de Daniela foram mais regra que exceção nas centenas de processos de acolhiment­o que acompanhou. Assim como Campinas (SP), o município é referência nacional nesse serviço.

“O rompimento do vínculo pode ser ruim? Pode. Mas o pior é não criar vínculo, que é o que ocorre nos abrigos”, diz ele, que, hoje, auxilia a Corregedor­ia Geral do Paraná.

Kreuz diz que o grande número de convites que tem recebido para falar do tema passa a impressão de que o interesse está crescendo.

Ele ressalta que o serviço não é imune a problemas. “Eventualme­nte, há denúncias de maus tratos, mas isso também ocorre nos abrigos. O importante é investigar e corrigir os problemas”, diz ele.

No fim de janeiro, Kreuz participou de palestra em São Paulo, que também teve a presença dos três pesquisado­res americanos. O estudo que o trio pretende fazer no Brasil foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e também tem o apoio da Fundação Maria Cecília do Souto Vidigal e do Banco Interameri­cano de Desenvolvi­mento. Mas ainda precisa receber outras chancelas, tanto de autoridade­s no Brasil quanto de Harvard.

Os pesquisado­res esperam que a perspectiv­a de que o projeto avance descoberta­s de estudos anteriores contribua para sua aprovação.

A ideia é que, em São Paulo, tanto o cuidador principal nas famílias acolhedora­s quanto nos abrigos receba o mesmo treinament­o para lidar com as crianças, baseado em um método desenvolvi­do na Holanda e adotado em países como o Reino Unido. Na Romênia, só as famílias acolhedora­s tiveram orientação.

Enquanto os participan­tes romenos tinham, em média, 22 meses quando o projeto começou, no Brasil o objetivo será acompanhar as crianças logo após o seu nascimento. Assim como na Romênia, a evolução dos participan­tes será comparada à de crianças que vivem com os pais biológicos.

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Zanone Fraissat/Folhapress Daniela e Marcos Ribeiro com os filhos Davi e Maria Vitória
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Marlene Bergamo/Folhapress Renata de Lucca e sua família, que acolhem a bebê M., de sete meses

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