Folha de S.Paulo

Demônios de João de Deus

- Por Chico Felitti Repórter ganhador dos prêmios Petrobrás e Comunique-se de jornalismo, é autor de “Ricardo & Vânia” (Todavia)

Livro narra denúncias de assédio sexual contra o líder místico, sua festa de aniversári­o com artistas e a ruína da cidade de Abadiânia (GO) após sua prisão.

Em juridiquês, a peça narrava que, uma vez na sala, ele fez com que ela ajoelhasse em sua frente e o masturbass­e, ‘sempre repetindo que se tratava de parte do ‘tratamento’. A vítima ‘só conseguiu chorar compulsiva­mente’ durante o ato. Quase um ano depois, a família a apoiou a prestar queixa no Ministério Público mineiro

[resumo] Os trechos abaixo compõem ‘A Casa - A História da Seita de João de Deus’, livro a ser lançado pela editora Todavia em abril, no qual se narram denúncias de assédio sexual contra o líder místico, sua festa de aniversári­o com a presença de artistas e um futuro ministro do STF e a ruína financeira da cidade de Abadiânia (GO) após sua prisão, com penas que somam 63 anos de reclusão

Cristiane Marques de Souza estava acostumada a trabalhar com o que chama de “clínica jurídica geral”. Todos os casos passavam por suas mãos, já que ela era a única promotora de Abadiânia (GO) desde 2007. Sua mesa parecia a maquete de uma cidade, com prédios formados por pilhas de processos civil de pensão, ato infraciona­l e crimes de trânsito, como embriaguez. “Sempre teve muita Maria da Penha. Muita mesmo”, diz ela em novembro de 2019.

Os casos de violência doméstica e violações a leis ambientais consumiam mais que as oito horas diárias de carga horária da funcionári­a, que morava com a família a poucos quarteirõe­s do fórum, numa casa com câmeras de segurança. Ela evitava sair e voltar para casa nos mesmos horários: “Abadiânia não é uma cidade pacata. Não mesmo”.

Até que, no começo do último mês de 2012, chegou uma nova remessa de inquéritos. Além dos assuntos de praxe, havia uma pasta robusta, que vinha de Belo Horizonte. Os documentos eram uma denúncia de assédio sexual:

“Com o fito de satisfazer sua lascívia, o denunciado acariciou os seios, barriga, nádegas e virilha da vítima. Não satisfeito, o denunciado segurou a mão da vítima, por cima da roupa, sobre seu órgão genital e começou a movimentá-la para cima e para baixo em movimentos constantes, enquanto afirmava que ela estava recebendo ‘o espírito’ e que iria ser curada”.

O denunciado era João Teixeira de Faria, mais conhecido como João de Deus; a denunciant­e, uma jovem de 16 anos que saíra de Minas Gerais e foi à Casa de Dom Inácio, onde o médium atendia milhares de brasileiro­s e estrangeir­os todas as semanas, em busca de tratamento. Segundo o documento, o ato ocorreu numa tarde de 2008: o líder da seita a fisgou na fila e a levou para sua sala.

Em juridiquês, a peça narrava que, uma vez na sala, ele fez com que ela ajoelhasse em sua frente e o masturbass­e, “sempre repetindo que se tratava de parte do ‘tratamento’”. A vítima “só conseguiu chorar compulsiva­mente” durante o ato. Quase um ano depois, a família a apoiou a prestar queixa no Ministério Público mineiro.

A promotora leu o depoimento, prestado semanas antes. Aquele não era um caso de clínica geral jurídica, estava mais para um indício de tumor maligno. Cabia a ela decidir levar ou não a denúncia adiante. “Eu não pensei duas vezes. O depoimento parecia muito forte, muito real.”

Uma mulher de 30 anos acatou uma denúncia contra o homem mais poderoso da cidade, com mais que o dobro de sua idade, baseando-se no depoimento de uma adolescent­e. Não era o primeiro caso contra ele na cidade. Outros dois ou três processos, de problemas fundiários e trabalhist­as, haviam passado por Marques de Souza e foram remetidos para Goiânia para serem julgados. Mas aquela pasta de 200 gramas de documentos continha uma acusação com um peso sem precedente.

A promotora sempre ouviu a respeito de Faria o mesmo zum-zum que corria entre os moradores: armas, gente desaparece­ndo, crimes. “E isso não materializ­ava juridicame­nte dentro da promotoria. Ninguém denunciava.” Denúncia de cunho sexual era inédita.

João de Deus e a promotora já se conheciam. Na visão dela, a relação dos dois era amistosa, embora superficia­l. Não haviam se cruzado mais que um punhado de vezes. Certa ocasião ele levou ao fórum um projeto para construir uma creche destinada a crianças carentes e perguntou a opinião dela. “Acho bom mesmo. Acho que o senhor tem de devolver pra cidade muito do dinheiro que a cidade ajudou o senhor a ganhar.”

MarquesdeS­ouzaeradas­poucasfagu­lhas de Estado no local em que atuou como promotora durante 12 anos, dos quais oito sem delegado titular. O delegado de municípios vizinhos, como Alexânia, agregava a função. Ela não teve medo de denunciar João de Deus.“Eu me sentia segura. Nunca tive medo de que algo acontecess­e.”

Antes do fim de 2012, o líder da seita foi prestar depoimento no prédio do fórum, num casarão térreo amarelo a 15 passos da prefeitura. O mesmo prédio onde a promotora dava expediente. E ele não foi só.

Os advogados de defesa arrolaram dúzias de testemunha­s: Chico Lobo, ex-vice-prefeito e administra­dor da Casa, o ex-prefeito Hamilton Pereira, funcionári­os e voluntário­s foram atestar que ele e a acusadora nunca haviam ficado a sós.

No tribunal, João de Deus afirmou que era assediado por muitas pacientes. “Eu tenho que me retirar algumas vezes porque as pessoas me veem como Deus, me abraçam, me agarram.” E negou ter atendido a jovem que o acusava. Negou que fizesse qualquer atendiment­o longe dos olhos de seus assistente­s e dos frequentad­ores da Casa. “Na minha sala, ninguém entra.”

Quando ele entrou para depor, até os funcionári­os do fórum saíram. “Todo mundo desapareci­a. Tem essa questão muito forte do terror”, diz a promotora. As audiências eram vazias porque o processo corria sob sigilo de Justiça. A imprensa não publicou uma linha sobre o caso. Mas o segredo sangrou por toda a cidade.

Enquanto o líder místico era julgado, um grupo se juntou no estacionam­ento da igreja, em frente ao fórum, e rezou por uma condenação. Uma condenação que não veio.

Em meados de 2013, João Teixeira de Faria foi absolvido da acusação de assédio sexual por falta de provas. A promotora recorreu. O processo foi para o Tribunal de Justiça de Goiás. Seis meses depois, o tribunal de segunda instância confirmou a absolvição de Faria.

Quase dez anos depois da primeira denúncia, com a confirmaçã­o de que aquele processo era o indício de um tumor maligno que levaria a Casa Dom Inácio à morte, a promotora não se arrisca a comentar por que João de Deus foi inocentado duas vezes no começo dos anos 2010. “O tribunal decidiu e a gente não vai revisitar esse caso. Juridicame­nte, isso é ruim.”

2013

Vinte e quatro de junho era um dia sagrado na Casa. No resto do Brasil é Dia de São João, mas em Abadiânia se comemorava o dia de João. De João Teixeira de Faria. O aniversári­o do líder era, desde os anos 2000, a maior festa da cidade.

Em 2013, a data caiu numa segunda-feira. Respeitand­o a semana útil da Casa, que só funcionava de quarta a sexta, a comemoraçã­o foi antecipada para a sexta-feira anterior, dia 21. As 52 pousadas não tinham vagas. O centro abriu às 7h, como de costume, e recebeu o mesmo milhar de visitantes habituais —a diferença é que naquela data as pessoas não iam embora depois do atendiment­o. Ônibus estacionad­os bloqueavam o trânsito da avenida Frontal,

já que no estacionam­ento fora montada uma tenda de tecido branco.

A festa começou de manhã, quando a banda da Polícia Militar passou pelas ruas tocando em homenagem ao dono da Casa, enquanto os funcionári­os das pousadas iam e vinham com os preparativ­os, transporta­ndo panelas tão grandes que precisavam ser carregadas em duplas. A cerca ao redor do estacionam­ento foi pouco a pouco sendo coberta de faixas pintadas com votos para o aniversari­ante.

A festa seguia a regra de uma reunião de adolescent­es: cada convidado levava comida ou bebida. O que mudava era a proporção. Os donos das pousadas e lojas contribuía­m com quantidade­s industriai­s: mil cachorros-quentes; 400 garrafas pet de refrigeran­te de marca genérica; uma avalanche de bandeirinh­as de papel colorido para enfeitar a Casa e a tenda.

O presente mais esperado era o bolo da Valdete. Já era tradição: Valdete Ferreira, dona da pousada e restaurant­e Dom Ingrid, preparava um bolo de metros de compriment­o. Eram, pelo menos, 20 quilos de massa de pão de ló com coberturas coloridas de açúcar, manteiga e chocolate. Quando ficava pronto, João o abençoava, e depois o bolo era levado para a tenda, onde seria cortado e distribuíd­o.

Sim, distribuíd­o, porque nada era cobrado das quase 4.000 pessoas que comparecia­m à festa de João Curador. “Era o único dia que eu cruzava a estrada”, diz o professor de inglês da rede pública Caio Araújo. “E a maioria das pessoas do lado de cá também só ia para lá no dia da festa.”

Assim que a noite caiu, o pessoal que estava na Casa atravessou a avenida. No palco montado no estacionam­ento, um mestre de cerimônias fazia um esquenta com o público: “Quem aqui veio de caravana do... Rio Grande do Sul?”. E dezenas de pessoas aplaudiam e gritavam. “E cadê a galera de Minas?” Mais gritos e palmas. No centro do terreno, a atração principal: uma fogueira de dez metros, o tamanho de um prédio de três andares. Um presente dos taxistas, que também cuidavam dos fogos de artifício.

O ator Marcos Frota passeava entre a multidão fazendo selfies com quem pedisse. Outros menos famosos, como a figurinist­a de Fernanda Lima, conseguiam comer em paz sua galinhada. Às 20h, começou um show do grupo Los Baileiros, que animava formaturas e casamentos em Goiânia. Não cobraram cachê.

Enquanto João de Deus não chegava, o grupo tocava sucessos do pop brasileiro, como Tim Maia: “Não quero dinheiro/ Eu só quero amar/ Só quero amar/ Só quero amar”.

Antes de subir ao palco, os integrante­s da banda tinham feito fotos com um homem de meia-idade que passara despercebi­do pela maioria dos frequentad­ores. Alto, os cabelos pretos começando a branquear, jaqueta de couro sobre camisa branca, jeans azul e sapatênis, era o ministro Luís Roberto Barroso, a cinco dias de assumir sua cadeira no Supremo Tribunal Federal.

Quando chegou à festa, vestindo um terno cinza assinado pelo estilista Ricardo Almeida, João de Deus encontrou dificuldad­e para subir ao palco. Centenas de pessoas tentavam cumpriment­á-lo, entregar-lhe um presente.

Dois assistente­s recolhiam os embrulhos —bichos de pelúcia, quadros com o rosto dele pintado por artistas amadores, garrafas de cachaça. O prefeito Wilmar Arantes lhe deu uma placa comemorati­va.

A primeira autoridade a se pronunciar foi o então governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB): “Vim somar a todos vocês, goianos, brasileiro­s, irmãos de todas as partes do mundo, que estão aqui, mais uma vez, para celebrar a vida do nosso querido e amado João de Deus”. O então senador do Distrito Federal Rodrigo Rollemberg (PSB) e o deputado federal Sandes Júnior (PP) não discursara­m, tampouco Barroso.

Mas o ministro conversou com a imprensa: “Eu o conheci por intermédio de um grande amigo, Carlos Ayres Britto, que o levou até minha casa numa ocasião em que eu estava doente. Foi quando nos tornamos amigos”, ele disse ao Diário da Manhã, de Goiânia. E afirmou que ia uma vez ao mês à Casa. “Se o João me convida para seu aniversári­o, não poderia deixar de vir abraçá-lo pessoalmen­te”, disse o ministro da mais alta corte brasileira, antes de pegar seu carro com motorista de volta para Brasília.

Quando finalmente conseguiu subir ao palco, João de Deus agradeceu a presença de todos. Disse que era uma noite de fartura. E de alegria. Antes de ir para um cercado VIP dentro da tenda, onde jantaria com autoridade­s e artistas, passou um recado para aqueles que questionav­am sua capacidade de seguir orquestran­do a Casa, aos 71 anos de idade. “Tenho uma notícia para dar. Vou viver mais 150 anos.” A salva de palmas foi seguida de fogos de artifício.

Maio e junho de 2019

“Olha a rifa do bode! Olha o bode que vai ser rifado!” Na porta da igreja, um homem de chapéu de palha e camisa azul aberta até o umbigo puxa por uma corda um bode de pelagem castanha, oferecendo bilhetes de R$ 5 para o sorteio do animal. A rifa do bode é uma das atrações da festa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, realizada em maio, com missa, pastel, pamonha feita na hora e feijoada.

A capela Nossa Senhora do Perpétuo Socorro fica dentro da Fazenda Barreiro, na metade do caminho entre Abadiânia e Abadiânia Velha. No dia seguinte, 4 de maio, a procissão levará a imagem da santa até a igreja da fazenda, onde ela será coroada. Terminada a liturgia, haverá queima de fogos e a fogueira, da altura de um prédio de três andares, vai queimar, ao som de um show ao vivo de Túlio do Forró e Zezé dos Teclados.

O taxista Márcio Silva, que trabalha para a Casa, olha para o prédio de toras de madeira que foi erguido ao lado da igreja. Coloca as duas mãos na cintura. “A do seu João era sempre maior do que a daqui. A gente fazia questão que fosse. Duas, três vezes mais alta.”

Um mês depois da festa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, é realizada a festa de aniversári­o de João de Deus. A primeira de que ele não participa em décadas. Como o dia 24 de junho caiu numa segunda-feira, não houve culto na Casa. Quando o sol está se pondo, desponta um grupo.

Uma dúzia de pessoas, entre elas Heather Cumming e Norberto Kist, saem da Casa e dão as mãos, formando um círculo. Começam por rezar o Pai-Nosso e emendam com as músicas prediletas de João de Deus, como “Índia”. No centro do círculo, uma fogueira que não chega à altura de um homem adulto. De longe, o taxista Silva olha para o fogaréu e, antes de virar de costas, diz: “Que merda.”

Enquanto João de Deus não chegava, ouviam-se sucessos: ‘Não quero dinheiro/ Eu só quero amar/ Só quero amar’. Antes de subir ao palco, integrante­s da banda tinham feito fotos com um homem de meiaidade despercebi­do pela maioria. Jaqueta de couro e sapatênis, era o ministro Luís Roberto Barroso, pouco antes de assumir no STF

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André Coelho - 9.dez.2018/Folhapress Casa de Dom Inácio, onde funciona o centro espírita mantido por João de Deus, em Abadiânia (GO)
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Walterson Rosa - 12.dez.18/Folhapress 1
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1 Seguidores e voluntário­s na cidade de Abadiânia (GO)
2 Casa de Dom Inácio de Loyola, sede do centro de João de Deus
3 O médium ao sair de depoimento após ser preso, em 2018
André Coelho - 9.dez.18/Folhapress 2 1 Seguidores e voluntário­s na cidade de Abadiânia (GO) 2 Casa de Dom Inácio de Loyola, sede do centro de João de Deus 3 O médium ao sair de depoimento após ser preso, em 2018
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Walterson Rosa - 16.dez.18/Folhapress 3
 ??  ?? Autor: Chico Felitti Editora Todavia R$ 59,90 (272 págs.) A Casa A História da Seita de João de Deus
Autor: Chico Felitti Editora Todavia R$ 59,90 (272 págs.) A Casa A História da Seita de João de Deus

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