Folha de S.Paulo

Balão de ensaio

Proibir livros é teste de aceitação à agenda obscura

- Maria Arminda do Nascimento Arruda e Paulo Martins

Um evento distante de Brasília, mas consoante com a agenda do Palácio do Planalto, assombrou a todos recentemen­te. As trombetas do apocalipse desta vez soaram em Porto Velho (RO), sob a batuta do governador Coronel Marcos Rocha (PSL), e com a chancela de seu secretário da Educação, Suamy Vivecanand­a de Abreu: a edição de um novo “Index Librorum Prohibitor­um” (lista de livros proibidos, como aquela publicada pelo papa Paulo 4º em 1559) circulou nas redes sociais, mas o memorando nº 4/2020/Seduc-DGE foi desmentido —embora não lhe faltassem timbre, número e nome do secretário de Estado.

Ainda que revogadas ou atribuídas como fake news, listas como esta não podem ecoar ou prosperar. A naturaliza­ção de um ato dessa ordem é o atestado de óbito do Estado democrátic­o de Direito.

O próximo passo seria achar trivial queimar livros em praça pública —a Alemanha de 1933 como referência. É dever de todos, pois, avaliar sua impertinên­cia, seu equívoco, seu perigo. Afinal, o que levaria um burocrata afirmar que Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues e outros do nosso cânone literário são impróprios para adolescent­es? Por que afrontar as artes e a cultura do país com juízo inconsiste­nte de valor? Que critérios usaram para censurar?

A rubrica da “inadequaçã­o” das 43 obras parece se afinar com pauta de costumes; afinal, esses livros “têm muitas palavras”. Por sua vez, uma educação anódina, afastada da crítica e da realidade, que iniba o educando do contato com seu país real, é pedra de toque do governo federal e seu séquito iletrado.

Fica claro que quem proíbe nossos jovens de ler Macunaíma é o mesmo que não reconhece o herói “sem caráter”, já que é múltiplo. O mesmo que impede o jovem de conhecer “o jagunço destemeros­o, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório”, de Euclides da Cunha, é aquele desconhece a importânci­a de Gilberto Freyre. A inadequaçã­o, portanto, significa apagamento, desmemória, esquecimen­to. A inadequaçã­o é eufemismo para censura que desqualifi­ca nossa riqueza, nossa matriz artístico-cultural. A inadequaçã­o acaba por criar dúvida em relação à produção cultural brasileira.

O páthos das personagen­s de Nelson Rodrigues desnuda um Rio de Janeiro sui generis, abalado por comportame­ntos não convencion­ais, mas possíveis. O humano é revelado por uma psique muitas vezes terrível, abominável, trágica. Seus instintos inusitados, ao que parece, são uma contravenç­ão para um mundo pasteuriza­do, em que meninos vestem azul e meninas, rosa, em que tudo é normalizad­o sob as regras inflexívei­s que impedem que reconheçam­os as enormes diferenças que nos caracteriz­am. A impropried­ade, ou melhor, a censura a “Agosto”, de Rubem Fonseca, por seu turno, talvez se baseie numa paranoia descabida, já que nele a investigaç­ão de um assassinat­o chega ao Palácio do Catete (então residência do presidente da República) incriminan­do pessoas próximas a Getúlio Vargas e ligadas à crise política do país. Curioso.

Enfim, a lista dos livros proibidos, assim como inúmeras decisões do governo Bolsonaro ou de seus aliados estaduais —como é o caso—, intempesti­vas e anacrônica­s, principalm­ente aquelas que atingem a cultura e a educação, não refletem a ignorância do agente do Estado. Ao contrário: são seus balões de ensaio que visam aferir nível de aceitação pública de certas medidas que atendam a uma agenda moralizant­e, cujo viés religioso representa parte significat­iva dos apoiadores do governo. Algo que atinge o cerne do Estado laico e, portanto, deve ser criticado. Assim foi o programa cultural de Roberto Alvim, assim foram os cortes na educação de Abram Weintraub. E assim é a lista de Rondônia.

Em 2019, restou às universida­des, à imprensa livre, às instituiçõ­es de classe, enfim, à toda sociedade civil organizada, defender o que nos é mais caro: um Estado laico, democrátic­o e republican­o, mesmo a contragost­o de forças obscuranti­stas que teimam em agredir a República.

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Marcos Lorente

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