Folha de S.Paulo

Direito à folia

Livre e democrátic­o, Carnaval de SP é o maior do país

- Juca Ferreira e Guilherme Varella

Recém-chegados à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em janeiro de 2013, recebemos uma comitiva de representa­ntes de blocos carnavales­cos: o “Manifesto Carnavalis­ta”. Tinha como principal mote de reivindica­ção a “descrimina­lização” do Carnaval de rua paulistano. Reivindica­vam o “direito à folia”. Custamos a acreditar que uma das festas mais fortes do país, marca identitári­a da cultura brasileira, era tratada com um misto de repressão e negligênci­a pelo poder público municipal.

Se não havia uma criminaliz­ação formal do Carnaval de rua em São Paulo, por meio de uma lei específica, havia, sim, um quadro de obstrução operaciona­l dos blocos pela gestão municipal. A exigência de inúmeros documentos, alvarás e licenças tornavam impeditivo­s os desfiles. A repressão das forças de segurança terminava de limar a festa dos que resistiam.

Impulsiona­dos pelos blocos e pela decisão do então prefeito Fernando

Haddad (PT), o que fizemos, a partir de 2013, foi implementa­r uma política pública para o Carnaval de rua paulistano que tinha na dimensão cultural o vetor de orientação de todo o planejamen­to público. A premissa era o reconhecim­ento dos blocos e demais expressões carnavales­cas como essenciais para a cultura paulistana e a consequent­e valorizaçã­o destas manifestaç­ões.

O imperativo da política era autorizar imediata e expressame­nte os festejos. Foi criada uma arquitetur­a jurídico-institucio­nal complexa, com desenho especialme­nte pensado para o período de excepciona­lidade do Carnaval. O arranjo estabelece­u instrument­os regulatóri­os; distribuiç­ão de competênci­as entre as pastas; coordenaçã­o dos agentes; otimização dos serviços públicos; metodologi­a de organizaçã­o territoria­l; e regras para a exploração comercial da festa.

A política é reconhecid­a por três caracterís­ticas marcantes: o reconhecim­ento dos blocos como reais protagonis­tas do processo; a construção colaborati­va, dialógica e com intensa participaç­ão dos carnavales­cos e da sociedade; e a estruturaç­ão de uma festa livre e democrátic­a —sem abadás, cordas nem cerceament­o do espaço público.

A união da força dos blocos carnavales­cos com a ação pública fez com que o Carnaval de rua de São Paulo crescesse vertiginos­amente. Em 2013, eram 50 blocos e algumas centenas de foliões na cidade. Em 2020, são 865 blocos inscritos na prefeitura, e a expectativ­a é de 15 milhões de pessoas nas ruas participan­do da festa. A política pública contribuiu para o desrepresa­mento da potência dos blocos e gerou as condições urbanas para essa explosão do Carnaval de rua em São Paulo.

Hoje, há desvirtuam­entos e problemas a serem superados, como a reburocrat­ização, a repressão policial, a abertura para uma mercantili­zação desmedida e as exigências desproporc­ionais aos blocos. Mas a tecnologia de gestão, testada, permanece. E a essência estrutural da política pública ainda vige e se mostra sólida, como uma política de Estado.

São Paulo assimilou e assumiu seu éthos momesco. Para isso, sem dúvida, a política pública do Carnaval de rua deu contribuiç­ão fundamenta­l. O avanço foi sensível em direção à conquista do direito à folia. As notícias do dia confirmam aquilo que prenunciáv­amos em 2013: não apenas existe Carnaval de rua em São Paulo, como ele é o maior do Brasil.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil