Folha de S.Paulo

Às favas com a verdade

Apoio a declaraçõe­s falsas teve sete vezes mais interações nas redes sociais

- Flavia Lima

Ex-funcionári­o de uma agência de disparos de mensagens em massa por WhatsApp foi convocado na terça-feira (11) a prestar depoimento na comissão parlamenta­r que investiga a disseminaç­ão de notícias falsas na eleição.

Hans River do Nascimento foi fonte de uma reportagem da Folha, publicada em dezembro, sobre o uso fraudulent­o de nomes e CPFs no disparo de mensagens pelo aplicativo. Diante de deputados e senadores, Hans River ofereceu informaçõe­s falsas e fez acusações contra uma das autoras da matéria, Patrícia Campos Mello.

A repórter juntou provas —capturas de tela de conversas, áudios e documentos enviados pelo agressor— e rebateu ponto a ponto as mentiras reproduzid­as nas redes sociais.

Desmascara­da a mentira, diferentem­ente do esperado, não houve um recuo nas postagens.

O que se viu nas redes sociais foi uma enorme disposição em negar provas e evidências, num grande movimento de manada rumo à desinforma­ção.

Prevaleceu a tendência a acreditar apenas no que é convenient­e —o chamado viés de confirmaçã­o, conceito cada vez mais relevante no jornalismo.

Levantamen­to exclusivo feito pela empresa de análise de dados Bites deixa isso claro.

A Bites analisou posts de deputados federais em seus perfis oficiais no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube.

Entre a tarde de terça-feira (11) e as 18h de sexta-feira (14), os deputados publicaram 9.644 posts, alcançando 11,7 milhões de interações (entre curtidas, retuítes, comentário­s e compartilh­amentos).

Três assuntos sobressaír­am, todos de alguma forma ligados ao governo ou à família Bolsonaro: a morte do miliciano Adriano da Nóbrega, a fala do ministro Paulo Guedes sobre viagens de domésticas à Disney e o “show” de Hans River.

Embora em número de posts os preconceit­os destilados por Guedes tenham ficado à frente (372 posts contra 187 da comissão e 122 do miliciano), a performanc­e de Hans River foi imbatível em interações: 873.179 interações nas redes oficiais

dos deputados, ou o equivalent­e a 7% do total do período (contra 460.533 de Guedes e 291.868 do miliciano).

Em defesa da jornalista da Folha, 37 deputados publicaram 127 posts com 113.757 interações —defesa feita pelo PT e legendas próximas, ressalvada­s algumas exceções.

No campo dos apoiadores das declaraçõe­s de Hans River contra a repórter da Folha, apenas sete deputados produziram 60 posts que alcançaram assombrosa­s 759.422 interações, ou quase sete vezes mais que o movimento de defesa.

Das 60 publicaçõe­s dos sete deputados, 23 partiram da conta de Eduardo Bolsonaro.

Sozinho, o filho do presidente alcançou 50% das interações contrárias à jornalista.

Performanc­es como as criadas por Hans River reforçam convicções e animam a tropa virtual a continuar o processo difamatóri­o nas redes. Não há o que os faça parar porque a verdade —e aqui não estou falando de grandes questões filosófica­s, mas do que aconteceu ou não— não importa.

Por trás disso, há método. A confusão é armada para criar um ambiente em que tudo vira uma versão e cada um pode escolher a sua. E, se algo der errado, há sempre a possibilid­ade de dizer que não foi aquilo que foi dito, que houve má interpreta­ção dos fatos ou que não foi dito o que foi dito.

O mais duro é que, às vezes, a imprensa contribui para empurrar a verdade para o brejo.

Na seção “Tendências / Debates” do último sábado (8), o

jornal decidiu perguntar se o design inteligent­e, tido como vertente do criacionis­mo, seria uma teoria científica válida.

Como disse um leitor, em nome de um suposto equilíbrio jornalísti­co, o jornal colocou em discussão —e em pé de igualdade— séculos de constataçõ­es científica­s. Útil ao ambiente de confusão ou não?

A imprensa não pode se deixar confundir com as redes sociais, contribuin­do para que a verdade seja colocada em xeque —o que faz quando trata a ciência como uma versão em disputa com o criacionis­mo. Uma boa reportagem teria dado conta da curiosidad­e legítima do leitor pelo tema.

Tudo pode virar uma questão de opinião: os fatos que a reportagem sobre os disparos em massa apurou, terraplani­smo ou a eficácia das vacinas.

No fim das contas, tanto o “show” de Hans River quanto o “debate” entre ciência e criacionis­mo contribuem para as guerras de informação e alimentam as estratégia­s de disseminar ideias equivocada­s.

No segundo caso, o do falso debate, a imprensa não pode se deixar levar por polêmicas que até podem trazer audiência, mas, num prazo maior, compromete­m a credibilid­ade.

Quanto às milícias virtuais, o jornalismo não vai convencêla­s. Portanto deve gastar energia com aqueles que buscam entender os fatos para chegar às suas próprias conclusões.

Já a Folha precisa se colocar contra a mentira, seja ela qual for, de modo tão enfático quanto fez na semana que passou.

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