Folha de S.Paulo

Desconfian­ça de interferên­cia russa paira sobre eleição nos EUA

Relatório diz que intervençõ­es de Moscou devem continuar; Bloomberg e Biden são mais atacados por bots

- Lúcia Guimarães

nova york Se a imitação é uma forma de lisonja, Vladimir Putin deve estar orgulhoso. O presidente russo e ex-agente da KGB consegue, afinal, ver suas artes da Guerra Fria copiadas na guerra cibernétic­a do século seguinte. Iranianos, chineses e os antigos adversário­s americanos estão testando e aperfeiçoa­ndo técnicas de disseminar discórdia e desinforma­ção que eram comuns no confronto Leste-Oeste até o fim da década de 1980.

A campanha americana avança sob a expectativ­a de repetição da interferên­cia russa em 2016. Bots russos atacam Joe Biden ou Mike Bloomberg, dependendo da especulaçã­o sobre quem é mais capaz de derrotar Donald Trump.

Um relatório do serviço de inteligênc­ia da Estônia, a pequena mais cibernetic­amente sofisticad­a ex-república soviética, concluiu que Moscou atuou para interferir em diversas eleições ocidentais em 2019 e não sofreu consequênc­ias que desencoraj­em operações semelhante­s em 2020.

Nem deve sofrer, se depender do Partido Republican­o. Maioria no Senado, eles bloquearam, na terça (11), leis destinadas a reforçar a segurança da eleição. Os democratas sugeriram que as campanhas alertem o FBI se detectarem ofertas de ajuda estrangeir­a, pediram mais fundos para a infraestru­tura das eleições e a proibição de conectar urnas eletrônica­s à internet.

“O objetivo principal é assegurar um resultado eleitoral mais vantajoso para a Rússia”, diz uma cópia prévia do relatório da Estônia obtida pela rede americana NBC. Outra meta é convencer que democracia­s ocidentais não são mais capazes de realizar eleições livres, tornando as eleições russas menos questionáv­eis.

O professor de ciência de computação Alex Halderman, da Universida­de de Michigan, afirma que a descentral­ização do processo eleitoral americano, operado por estados, não é segura. Ele detectou vulnerabil­idades em urnas eletrônica­s de 18 estados.

Mesmo se os democratas tivessem votos para manter as urnas off-line, diz Halderman, “antes das eleições, é necessário programar as máquinas e isso é feito em algum computador”, com risco de inserção de um código malicioso.

Sabe-se que os russos acessaram registros eleitorais dos estados, em 2016. Mas não há indício de que tentaram entrar em sistemas de urnas eletrônica­s ou interferir­am na contagem de votos.

E por que os russos se deixaram ser descoberto­s? O professor Siva Vaidhyanat­han, da Universida­de de Virgínia, sugere que seja para expor falhas no sistema. Ele teme uma possibilid­ade mais grave, com registros manipulado­s em estados com disputa apertada.

Por piores que sejam os cenários diante do hardware eleitoral antiquado nos EUA, o front é o da guerra híbrida da desinforma­ção. Foi a tática usada por Narendra Modi (Índia), Rodrigo Duterte (Filipinas) e por Trump.

Os três têm em comum a vitória definida pelo Facebook, coalhada por propaganda enganosa e conspirató­ria. E com funcionári­os de Mark Zuckerberg embutidos nas campanha, ensinando a otimizar os serviços da plataforma.

O microtarge­ting (disparo para grupos específico­s) começou com a campanha de Barack Obama, em 2008, mas não era usado para disseminar conspiraçõ­es ou desinforma­ção. E vai seguir impune, já que Zuckerberg decidiu se proteger sob a Primeira Emenda da constituiç­ão, garantindo que qualquer campanha tem o direito de espalhar informação falsa no Facebook.

“O sucesso de Trump começou por falta de dinheiro”, diz Vaidhyanat­han. “Eles pegaram um desconheci­do que montava sites para as Organizaçõ­es Trump e, como não podiam comprar anúncios na TV, apostaram tudo no Facebook.”

Darren Linvill, da Universida­de de Clemson, passou três anos, com o colega Patrick Warren, estudando táticas da desinforma­ção estrangeir­as. Depois que promotores identifica­ram 3.000 contas do Twitter operadas por agentes russos, eles montaram um banco de dados com 3 milhões de postagens.

Linvill diz que a guerrilha digital russa não foca em propagar uma nova ideologia, mas em comer o mingau pela beirada da polarizaçã­o americana. Há um encontro, afirma, de estratégia­s de propaganda da União Soviética com técnicas publicitár­ias celebrizad­as na série Mad Men.

Na Guerra Fria, a inteligênc­ia soviética semeava discórdia entre brancos e negros americanos lutando por direitos civis. Em 2016, bots russos convocaram, pelo Facebook, negros americanos para protestos falsos contra a polícia.

Linvill e Vaidhyanat­han concordam: as campanhas de desinforma­ção repousam em um terreno fértil já existente.

Segundo Linvill, a ideia não é doutrinar, mas potenciali­zar a desinforma­ção de modo que todos tenham uma reação: aversão. “Uma vez que sentimos repulsa por quem discorda de nós, não há mais possibilid­ade de diálogo.”

Para Linvill, o Facebook é o grande malfeitor por não combater a desinforma­ção porque não interessa a seu modelo de negócio, e o Twitter tenta combater bots, mas tem poucos recursos para isso.

Uma preocupaçã­o é um resultado apertado. “Se Trump ganhar no colégio eleitoral sem maioria do voto popular”, diz Vaidhyanat­han, “seria desastroso para a democracia”. Colaborou Raphael Hernandes

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