Folha de S.Paulo

Ala militar pode ajudar ala ideológica

Governo pode ficar mais livre para fazer demagogia econômica e reacionári­a

- Vinicius Torres Freire Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administra­ção pública pela Universida­de Harvard (EUA) vinicius.torres@grupofolha.com.br

A “ala militar” deu um chega para lá na “ala ideológica” do governo, a gente lê por aí. Hum.

É verdade que a seita de aloprados reacionári­os perdeu cadeiras no Planalto, mas a turma ainda mora de pijaminha no coração do presidente, de resto líder de torcida das milícias virtuais. Se por mais não fosse, a seita é liderada politicame­nte pela filhocraci­a bolsonaria­na.

No mais, a “ala ideológica” continua fora da casinha e vivíssima, o que é evidente, por exemplo, na demagogia com a gasolina ou no ataque à razão, à cultura ou a jornalista­s, como na campanha imunda contra Patrícia Campos Mello, jornalista desta Folha, aliás difamada com apoio do Twitter.

O ministro-general Augusto Heleno é “ideológico” ou “militar”? Acaba de acusar até o papa de “confratern­izar com um criminoso” (Lula), “exemplo de solidaried­ade a malfeitore­s, tão a gosto dos esquerdist­as”.

Dá-se pouca bola para demagogias como a da gasolina, que pegou. Quem conversa com o povo na rua e nas redes ouve que “o Bolsonaro quer baixar a gasolina, mas os governador­es e os deputados não deixam”, e variantes.

Preços de comida, gasolina, ônibus e dólar são indicadore­s econômicos “pop” importante­s, qualquer demagogo grosso sabe. O índice de irritação com a gasolina, o “Irrigás”, digamos, está no nível mais alto desde pelo menos 2012, com exceção de maio de 2019 (época de mau humor na economia) e da greve dos caminhonei­ros, baderna apoiada por Bolsonaro e empresário­s bolsonaris­tas e espertalhõ­es em geral.

Pode se medir o “Irrigás” comparando o custo de encher o tanque de um carro popular com o salário médio. Tende a ficar nesse nível alto ou subir. O salário quase não sobe, o dólar vai ficar nas alturas, o preço do petróleo não deve cair mais, afora em caso de derrocada na economia mundial.

Pode haver mais rolo: o Supremo está para julgar a inconstitu­cionalidad­e do

tabelament­o do frete. Se o tabelament­o cair, haverá risco de rolo, o que assusta Jair Bolsonaro, que não teria como apoiar caminhonaç­os, como o fez em 2018.

Essa digressão da gasolina ilustra como a “ala ideológica” vai além dos disparates atrozes e desumanos do governo. Bolsonaro cria atrito político ou desordem nas expectativ­as de gestão racional da economia por fazer essas e outras demagogias, que abalam mesmo as sagradas reformas.

Decerto chamou o Exército com o objetivo de evitar trabalho administra­tivo, que o exaure, e porque foi aconselhad­o a conter a desordem. Também porque não conhece outros quadros. Passou a vida a circular por quartéis, por sua paróquia mental de ressentime­nto odiento, pelo porão da ditadura e pelo baixíssimo clero parlamenta­r.

Se conseguir terceiriza­r o governo para generais, para o premiê Rodrigo Maia e para Paulo Guedes, poderá se dedicar mais à reeleição e ao comando da seita, que quer transforma­r em partido.

Além da desordem ruinosa, prepara-se na Educação um plano de doutrinaçã­o ignara,

com livros didáticos e com tudo.

Mesmo tutelado pelo vicegenera­l Mourão, o Ministério do Mau Ambiente continuará a ofensiva mineradora e ruralista contra indígenas e matas. A ministra dos Costumes, Moral e Cívica, Damares Alves, continuará a campanha contra o Estado laico e de arregiment­ação de simpatias neopenteco­stais. Militares não gostam de bagunça, da cama desarrumad­a à agitação social, passando pelo governo. Se tiverem sucesso, os Bolsonaros estarão mais livres e fortes para comandar a “ala ideológica”.

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