Folha de S.Paulo

Pobreza na sociedade homogênea

‘Parasita’ mostra a falta de lugar para os perdedores numa sociedade igualitári­a

- Samuel Pessôa Pesquisado­r do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultori­a Reliance. É doutor em economia pela USP

O grande vencedor do Oscar deste ano foi “Parasita”, cuja narrativa tem como ponto de partida a desigualda­de social na Coreia do Sul.

É curioso que seja assim, uma vez que a sociedade sulcoreana é relativame­nte igualitári­a. Segundo dados da OCDE, o coeficient­e de Gini sulcoreano (que mede a desigualda­de) é baixo: 30,2, ante 51,5 no Brasil, ambos para 2014.

A fração da renda apropriada pelos sul-coreanos que compõem os 10% mais ricos, de 22%, é das menores da OCDE.

No Brasil, os 10% mais ricos se apropriam de 42% da renda.

A pobreza, contudo, é relativame­nte elevada na Coreia do Sul. Segundo a mesma base de dados, a taxa de pobreza, de 14,4%, é maior do que a média para a OCDE, de 11,4%. O problema é ainda maior na pobreza da população idosa: 48,8%, ante 12,1% da média da OCDE.

Os números sugerem ser uma sociedade que priorizou excessivam­ente o cresciment­o econômico e deu pouco peso para o bem-estar presente. Carece de um Estado de bemestar

social abrangente. Não faço a menor ideia de como esse equilíbrio consegue vigorar numa sociedade democrátic­a.

Sabemos que a sociedade sulcoreana tem um sistema público de educação de altíssimo nível. Há, portanto, bastante igualdade de oportunida­des. E, de fato, a baixa desigualda­de aponta nessa direção.

Também sabemos que, em sociedades com elevada igualdade de oportunida­des, as diferenças inatas têm maior peso para explicar o desempenho no mercado de trabalho.

Se o berço não faz tanta diferença para sua vida profission­al, os diferencia­is de talento serão mais importante­s.

Sociedades assim podem ser muito dolorosas. Se há igualdade de oportunida­des —e se houver percepção desta igualdade—, somos os únicos responsáve­is por onde estamos.

O excelente livro “As Crianças mais Inteligent­es do Mundo” descreve a elevada competição dos alunos sul-coreanos e o excesso de horas que os jovens dedicam ao estudo. Nesse caso, trata-se, sem dúvida, de excesso. Tanto que o MEC deles conduz políticas públicas para desestimul­ar as longas jornadas sobre os livros.

Talvez este seja o tema de “Parasitas”: a falta de lugar que há para os perdedores em uma sociedade igualitári­a, muito competitiv­a e sem Estado de bem-estar social.

Para mim, que tenho o hábito de olhar as coisas referencia­das ao Brasil, o que mais chamou a atenção no filme foi o enorme grau de homogeneid­ade daquela sociedade.

Os filhos da família que está na pobreza extrema compartilh­am do mesmo universo dos filhos da família mais rica. Têm o mesmo domínio do idioma, não se vestem de forma muito diferente e compartilh­am das mesmas referência­s culturais. Os pobres extremos conseguem dar aulas de inglês e atendiment­o psicológic­o aos filhos dos extremamen­te ricos.

Os extremamen­te pobres se distinguem, aos olhos dos extremamen­te ricos, só por um cheiro particular que incomoda os ricos. Fruto de diferenças de alimentaçã­o, segundo o filme.

A sociedade sul-coreana superou o subdesenvo­lvimento, é tecnologic­amente muito avançada, equalizou as oportunida­des e é socialment­e homogênea. No entanto, há muita pobreza, principalm­ente entre os idosos, e há competição em demasia, principalm­ente entre os jovens.

“Parasita” é um manifesto em defesa do Estado de bemestar. Bem-estar que equalize os resultados, e não bem-estar que promova a igualdade de oportunida­des.

No Brasil temos a situação inversa: pobreza entre os idosos bem menor que na Coreia do Sul e desigualda­de muito maior. Estamos muito atrasados na equalizaçã­o das oportunida­des.

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